quarta-feira, 3 de setembro de 2014

POEMA DA NOITE Tramway, por Álvaro de Campos


Aqui vou eu num carro eléctrico, mais umas trinta ou quarenta pessoas, 
Cheio (só) das minhas ideias imortais, (creio que boas).
Amanhã elas, postas em verso, serão 
Por toda a Europa, por todo o mundo (quem sabe?!) 
Triunfo, meta, início, clarão 
Que talvez não acabe.
E quem sobe? Que sente? O que vai a meu lado 
Só sente em mim que sou o que, estrangeiro, 
Tem o lugar da ponta, e do extremo, apanhado 
Por quem entra primeiro.
Que o que vale são as ideias que tenho, enfim, 
O resto, o que aqui está sentado, sou eu, 
Vestido, visual, regular, sempre em mim, 
Sob o azul do céu.
Ah, Destino dos deuses, dai-me ao menos o siso 
Ao que em mim pensa a vida de ter um profundo 
Senso essencial, mas certeiro e conciso Da vida e do mundo!
Sei, sob o céu que é que toca as minhas ideias, 
Sob o céu mais análogo ao que penso comigo 
Que este carro vai com os bancos cheios 
Para onde eu sigo.
E o ponto de absurdo de tudo isto qual é? 
Onde é que está aqui o erro que sinto? 
A minha razão enternecida aqui perde pé 
E pensando minto,
Mas a que verdade minto, que ponte, 
Há entre o que é falso aqui e o que é certo? 
Se o que sinto e penso, não sei sequer como o conte, 
Se o que está a descoberto
Agora no meu meditar é uma treva e um abismo 
Que hei-de fazer da minha consciência dividida? 
Oh, carro absurdo e irreal, onde está quanto cismo? 
De que lado é que é a vida?

Álvaro de Campos nasceu em Tavira, Algarve, Portugal, e depois se mudou para Glasgow, Escócia, onde foi estudar engenharia. Primeiro mecânica, depois naval. "Quase se conclui do que diz Campos, de que, o poeta vulgar sente espontâneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim" afirmou Ricardo Reis em um de seus apontamentos. Álvaro de Campos é um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa.

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