domingo, 7 de setembro de 2014

O descaso do estado com o médico e o doente brasileiros


Medina é vocação. Enfrentar a tensão da responsabilidade pela vida do doente não é para qualquer um. Desde o juramento de Hipócrates que os médicos colocam, ao menos em tese, a vida do paciente acima de seus próprios interesses pessoais muitas vezes.
Muitos se formam na difícil faculdade sonhando com a prática, acreditando que farão diferença na vida de muita gente, podendo salvar aqueles que, sem seu auxílio, encontrariam certamente a morte. É uma profissão diferenciada, bela e valiosa.
Mas não é valorizada pelo estado. Muitos jovens mergulham no mercado de trabalho nos hospitais públicos cheios de expectativa, esperança, utopia. O tempo se encarrega de esfregar em suas caras a dura realidade de nosso sistema público abandonado e apodrecido.
Foi o caso com o carioca Marcio Maranhão, cirurgião torácico que ingressou na atividade medicinal repleto de sonhos, e foi sendo expelido ao longo dos anos pelo próprio sistema, por não lhe oferecer o mínimo de condição para trabalhar com dignidade.
Sua trajetória é relatada no livro Sob pressão: A rotina de guerra de um médico brasileiro, lançado este mês pela editora Foz. Mostra bem como é absurdo o quadro do Sistema Universal de Saúde (SUS) em nosso país.
É leitura que nos deixa indignados, como o próprio médico ficou a ponto de abandonar sua tão sonhada posição de médico do estado e ter de desabafar em depoimentos à jornalista Karla Monteiro. Seu livro é mais uma tentativa de ajudar os doentes brasileiros, dessa vez denunciando a incompetência e a má administração que levaram o sistema ao atual cenário de ruínas.
Imbuído de romantismo ao se formar, Marcio foi logo tendo que se deparar com a realidade trágica do Souza Aguiar, imerso no caos das filas infindáveis à espera de um leito ou tratamento. A rotina do médico era completamente surreal, mas não incomum para a profissão. Chegava a fazer 14 ou 15 plantões por mês, correndo entre três hospitais diferentes sem dormir.
Fosse “apenas” a correria, as noites não dormidas ou o queijo-quente como única refeição, tudo bem. Mas tudo isso era nada se comparado ao que ele tinha de enfrentar nos hospitais, em termos de precariedade das instalações e falta do básico para o exercício de suas funções.
Marcio descreve a verdadeira tragédia que o país vive na área de Saúde. “O Brasil faz política na saúde em oposição à política de saúde. Faz-se política de governo em vez de uma política de Estado”, diz. Sua experiência atesta o completo descaso do estado, das diferentes esferas de governo. Falta uma política integrada, planejamento, cobrança, responsabilidade, falta tudo!
Os médicos, em meio a esse caos, ficam enxugando gelo, correndo entre os corredores fétidos, lotados, tendo que improvisar o tempo todo, apelar às gambiarras, ao jeitinho, correr riscos de imprudência para tentar salvar a vida daquelas pessoas desesperadas, entre a vida e a morte. Tudo, absolutamente tudo na saúde pública era repulsivo para o jovem cirurgião.
O livro conta casos pitorescos, que seriam até engraçados com o devido afastamento, visto como em um filme de comédia pastelão. Mas estamos falando da vida dos brasileiros, morrendo por falta de atendimento, por falta do básico, de um dreno, de um fio para sutura, de sangue para transfusão. É muito sofrimento causado pela negligência estatal.
E como esses bravos médicos são recompensados por seu esforço homérico para tentar mitigar o caos do sistema? Em um dos hospitais públicos em que Marcio trabalhou por oito anos, realizando complexas cirurgias, seu salário líquido era de apenas R$ 1.372,67. No período todo, teve aumento de menos de R$ 100. Como cobrar desses médicos comprometimento e determinação?
A grande preocupação dos burocratas da medicina é com as horas semanais, que devem ser cumpridas. O importante é bater ponto. É tudo feito para se resguardar politicamente ou judicialmente, não para atender aos doentes. O doente não pertence a ninguém nessa loucura toda, não tem “dono”, responsável. O médico também costuma ficar solto no sistema, apenas cumprindo suas horas e muitas vezes se esquivando com base na justificativa – legítima – de que faltaram condições para uma cirurgia qualquer.
O SAMU foi uma das experiências mais bizarras do autor, que chegou a percorrer em um dia 250 quilômetros com um senhor à beira da morte em busca de um leito em hospital público. Enfrentar traficantes nas perigosas favelas cariocas sem um pingo de infraestrutura é realmente análogo ao que fazem os Médicos Sem Fronteiras em clima de guerras. O salário para um plantão de 24 horas no SAMU? R$ 500.
Falta um plano de carreira estatal para os médicos, que ficam largados nessa confusão toda, e depois acabam usados como bodes expiatórios pelos governantes para se isentarem de qualquer culpa pela caótica situação do SUS. Como ponta final entre o sistema e o paciente, é o médico que leva a culpa. A propaganda negativa ajuda a quebrar a confiança da sociedade na classe médica, o que é perigoso.
Não há solução fácil. Mas sem dúvida ela não passa pelo programa sensacionalista Mais Médicos, ou pelo discurso populista de que basta jogar mais recursos públicos no setor. Há muita corrupção, desvio, falta de accountability, falhas estruturais. Marcio Maranhão jogou a toalha. Não aguentou. Foi mais um soldado que abandonou a batalha após dedicar seu suor a uma luta perdida.
Ainda deposita esperança no SUS, um modelo igualitário e “socialista” de saúde. Alguns países desenvolvidos, é verdade, conseguem oferecer uma saúde pública de qualidade, ainda que a um custo elevado. Sou mais cético: a ideia de que caberá ao estado cuidar da saúde de todos de uma forma digna parece um tanto utópica, ao ignorar o mecanismo de incentivos inadequado.
Mas não resta dúvida de que o estado poderia, ao menos no básico, fornecer condições bem mais razoáveis para que esses médicos, funcionários de carreira do estado, pudessem tratar dos pacientes mais pobres e salvar milhares de vidas que hoje se perdem por total negligência.
Rodrigo Constantino

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