domingo, 8 de junho de 2014

Desconstruindo a representação


Merval Pereira, O Globo
Numa democracia representativa como a que (ainda) temos, esse papel caberia aos parlamentares eleitos pelo voto direto do cidadão, e não a movimentos “institucionais” e mesmo “não institucionalizados”, como previsto no decreto presidencial que está sendo contestado no Congresso.
Em troca de não colocar em votação um decreto legislativo que anularia o decreto presidencial, o presidente da Câmara, Henrique Alves, está pedindo que o governo cancele o decreto e submeta a proposta ao Congresso através de um projeto de lei.
Esta parece ser a única maneira viável de aprovar a criação desses conselhos, que ficariam, porém, circunscritos a certas instâncias definidas pelo Congresso, o que retiraria de sua criação o aspecto de “democracia direta”, que é o centro da proposta do governo.
Para o filósofo Roberto Romano, o aspecto institucional mais desastroso é justamente o predomínio do Executivo sobre os demais poderes. “Pela enésima vez a Presidência tenta legislar, atropelando o Congresso e as instâncias jurídicas apropriadas”, ressalta Romano.
Diante da leniência do Congresso, que troca seu poder por favores pessoais aos congressistas, “já temos uma ditadura do Executivo, se bolivariana, o futuro próximo (muito ligado à eleição ou à reeleição do cargo presidencial) dirá”.
Roberto Romano ressalta que “uma coisa é a participação popular, como audiências públicas obrigatórias e outros instrumentos; algo bem diferente é a tese, contida no decreto, segundo a qual mesmo movimentos “não institucionais” podem ter influência direta nas decisões de ordem pública.
“Com o decreto, o que se faz é gerar um Estado na periferia do Estado. Só que ninguém, naqueles movimentos, assumirá responsabilidade oficial pelos erros e possíveis acertos das decisões perante a população como um todo”.
O cientista político Bolívar Lamounier chama também a atenção para a questão da responsabilização das decisões e da necessidade de dar explicações aos cidadãos, características da democracia representativa.
Parafraseando Sobral Pinto, ele diz que o decreto dos conselhos “tem catinga de fascismo” na sua “flagrante inconstitucionalidade”, pela “indigência intelectual que exala” e por sua “mal disfarçada sonoridade ideológica populo-esquerdoide-fascistoide”, calculada para agradar a um certo público interno do PT e a setores externos que não digerem a democracia “burguesa”.
Ele ressalta que no regime democrático, “a participação não é induzida — não se confunde com a arregimentação promovida por regimes populistas, autoritários e totalitários —, mas é sempre bem-vinda”.
O problema, diz Bolívar, é que os setores que demandam a inclusão raramente oferecem ideias úteis sobre como efetivá-la. “Martelam as teclas populo-esquerdoides da “sociedade civil”, dos “movimentos sociais”, dos “plebiscitos”, do “aprofundamento da democracia” e etc, mas sempre ferindo acordes bem conhecidos”.
Simplesmente porque considera que a presidente “não pode ser assim tão jejuna em História e teoria política”, Bolívar está convencido de que Dilma “sabe, com certeza, que seus ‘conselhos populares’ outra coisa não são que a velha mistificação corporativista, sindicalista e fascistoide; a ideia de que a ‘verdadeira’ consciência cívica se plasma no convívio com a companheirada; o corolário é o de que o voto, essa ‘velharia liberal’, é individualista, fragmentador, atomístico etc”.
Tudo faz crer, diz ele, que se trata de um pré-pagamento “que a doutora Dilma se dispôs a fazer aos setores mais arredios do PT para mantê-los dentro do barco eleitoral, ainda mais com o ‘Volta Lula’ ciscando por aí”.

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