quinta-feira, 15 de maio de 2014

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA - Tristeza não é Depressão


CARLOS VIEIRA
“Minha funda tristeza, minha tristeza/ de todos os momentos, disse: queres casar comigo?/ Hoje estás tão esquiva e tão vulgar,/ tão quotidiana, tão humana/ minha pobre tristeza./ Ouve: quero beijar-te/ toda; beijar-te dos pés à cabeça,/ doidamente, num arrepio./ E possuir o teu pequenino corpo,/ teu frágil e pequenino corpo,/ onde se esconde uma alma tiritante de frio.
Minha tristeza de porcelana,/ és como um vaso chinez, onde floresce, longo,/ o lyrio artificial da minha dor./ Se alguém te esphacellasse/ se alguém, um pobre alguém, te apertasse entre os dedos,/ e eu te perdesse/ que seria de mim?/ Não tenho o luxo dos prazeres ricos,/ não tenho o dinheiro que é preciso/ para vestir a minha alma um pyjama de seda/ com que ella passaria o seu tédio na alameda.
Vazia e branca da minha vida./ Vê: eu só tenho dois olhos/ para te olhar, minha tristeza;/ só tenho uma boca/ para te beijar, minha tristeza;/ só tenho duas mãos/ para apertar as tuas mãos.”
Poema de Carlos Drummond de Andrade – “Minha tristeza de Porcelana”
*usei a grafia publicada em “Os  25Poemas da TristeAlegria”, Ed. CosacNaif, 2012.
Numa depressão, a pessoa fica impedida de pensar sobre o próprio estado mental, a pessoa fica sem condições de tirar algum proveito dos seus pensamentos e sentimentos. Na depressão, tudo parece estar desinvestido, não há força física nem psíquica para se ligar às pessoas e aos afazeres da vida quotidiana. O depressivo fica enredado por seus sentimentos pessimistas, falta de perspectiva e descrença, perda da ideia de futuro, sentimento de ruína e às vezes, desespero.
Na tristeza a pessoa está desanimada, triste mesmo, por alguma perda, por algum fato que a desapontou mas há mais integração. A tristeza é um estado cinzento, não entra a angústia demasiada, o desespero, a ideia de ruína e até de suicídio. A tristeza está em alguém enlutado, saudoso, carente de alguma coisa, desamado e solitário. A sua solidão ainda que sofrida, pode ser sentida, pode ser acompanhada de pensamentos a respeito da experiência que se está vivendo. Sente-se triste em ser finito, triste por se sentir abandonado, triste pela tristeza do outro querido, triste por não poder ajudar, por ser limitado, por sentir em sua própria pele psíquica que onipotência é uma fantasia. Tristeza pela pobreza, pelo pão que pessoas nesse nosso Brasil não tem para comer; triste pela evidencia de que a sociedade perdeu a noção de solidariedade, comunidade, humanidade. Mais triste ainda pelo desamparo nas expectativas de uma nação mais justa, com direitos humanos não atendidos, pela mentira, pelo cinismo, pela corrupção. Triste por não acreditar na classe política, na capacidade da Justiça funcionar diante da impunidade. Triste pelos dias atuais, pela animalidade do ser humano, pela violência desvairada contra os semelhantes, com os preconceitos, com a marca, cada dia mais real, de que o mundo se divide numa minoria muito rica e uma maioria muito necessitada: a distribuição de renda nos quatro cantos do mundo é imoral, cada dia mais desnivelada. No entanto, apesar disso tudo, necessariamente essa tristeza pode em algumas pessoas não se transformar em depressão.
Vamos ao poema do nosso Drummond:  o poema descreve de uma maneira singela, lírica e meticulosa, a experiência da Tristeza. Longe de adentrar numa crítica literária mais profunda, o que me chama mais a atenção nesse belo poema do Itabirano é a  capacidade de acolhimento à tristeza. A tristeza não é um desespero, uma loucura desvairada – “minha tristeza de porcelana,/ és como uma vazo chinez, onde florece, longo/ o lyrio artificial da minha dor.”
Drummond sabe que a experiência emocional é frágil, mas acredita que possa ser elaborada numa situação mais integrada, que possa advir, ainda que dentro da dor, um “lyrio”, algo sublimado, criativo. No decorrer de todo o poema fica claro uma coisa: a metáfora do feminino, um feminino que mostra como se acolhe uma mulher. Vive-se uma experiência de “sofrença”, pois todos os órgãos dos sentidos, tanto físicos quanto os da alma, aceitam o tristemente como algo tolerável, suportável, humano, fazendo parte da vida como algo inevitável.  Drummond sabe o que é ser triste, “brinca” com a tristeza, e faz do seu vazio um belo poema. A tristeza não se pode perder, é algo intrínseco, mas nem sempre acolhido. O movimento imediato da mente  é querer se livrar da experiência de estar triste. Nós nunca fomos educados para acatar, acolher, não ter medo de sentimentos ditos estranhos e “ruins”, como estar triste, ter ódio, por exemplo. O poeta ensina que existem recursos para suportar o sofrimento sem necessariamente enlouquecer. Aliás, é bom que se frise que a mente não é tão fraquinha quanto muitas pessoas pensam. Temos recursos em estado de poupança, a questão é que temos preguiça mental de se dedicar ao trabalho de elaboração dos nossos conflitos inevitáveis.
Carlos de Almeida Vieira - psicanalista e psiquiatra.

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