quinta-feira, 15 de maio de 2014

Cartas de Nova Iorque: Espaço pessoal, por Luisa Leme


Manhattan, a região principal das cinco nova-iorquinas, tem quase 22 quilômetros de comprimento e um pouco menos que quatro de largura. A ilha não é muito grande e tem a maior densidade de todos os condados no país, quase 26 mil pessoas por quilômetro quadrado. A maioria dos 8.3 milhões de habitantes de Nova Iorque se espreme por lá diariamente.
A falta de espaço faz com que as pessoas dividam não só o metrô, ônibus, filas em farmácias e mesas em restaurantes. Quem vive aqui acaba dividindo momentos com estranhos, pela falta do que os americanos chamam de “personal space”. Em Nova Iorque, a gente chora em público.
A primeira vez que acontece é muito estranho. Os olhos molhados embaçam a visão da gente, que não consegue reconhecer quem nos olha, com curiosidade, pena, ou indiferença. Depois, uma vergonha repentina invade, e a tentativa de esconder a vulnerabilidade numa cidade tão agressiva e dura faz com que o corpo pare de se mexer. Ficamos imóveis, com vontade de que ninguém nos perceba. Olhos baixos, lenço nas mãos.
Depois que isso acontece algumas vezes a situação e a falta de ter um canto para ficar sozinho se torna parte de morar na cidade. A vergonha passa. Nova Iorque, depois de um tempo, dá segurança e proporciona que as pessoas exibam sua identidade. Veteranos choram e olham nos olhos de quem assiste.
E o orgulho de viver algo forte e chorar sem timidez, ou a vontade de sumir durante um momento de emoção, são respeitados.


Quando choramos em Nova Iorque, as pessoas que estão tão perto e ao mesmo tempo são tão estranhas fingem que não estamos ali. A única vez que chorando em público me acudiram na cidade, foi uma brasileira! Ela entendeu a conversa do telefone enquanto dividíamos uma mesa num café e depois de desligar, disse que tudo ficaria bem e me ofereceu um abraço. A nossa gente é especial nesse aspecto. No meio da cidade mais populosa, cheia de pessoas mal humoradas que as vezes chegam a ser preconceituosas, brasileiros oferecem abraços desconhecidos.
Para quem está acostumado com esse calor humano, a discreção nova-iorquina é interpretada como individualismo, frieza, agressividade. Mas depois de presenciar muitos choros em Nova Iorque, acredito que entendi qual é a regra. Chorar em público acontece em qualquer lugar do mundo, mas aqui há um código social, um respeito maior para que a falta de privacidade não nos deixe ainda menos humanos.
Quase como um sinal de que não importa o que aconteceu, a vida continua sem a opção do nosso controle. Assim como se faz com a falta de espaço, precisamos nos adaptar. Porque a cidade ainda se move, e o choro, ou a razão para as lágrimas, não passam de mais um momento no meio da multidão.

Luisa Leme é jornalista e produtora de documentários. Passou pela TV Cultura e TV Globo em São Paulo, e pelas Nações Unidas em Nova York. Mora nos Estados Unidos há sete anos e fez mestrado em relações internacionais na Washington University in St. Louis. Escreve aqui sempre às quintas-feiras. Mantém o blog DoubleLNYC com imagens e impressões sobre Nova York. Twitter: @luisaleme

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