quarta-feira, 19 de março de 2014

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA Machado de Assis: uma teoria da alma humana



CARLOS VIEIRA
Há muito me fascina pesquisar as relações entre a literatura e a psicanálise. Tenho encontrado textos divinos, e sempre lembro que Freud dizia que os poetas chegaram antes dele em sua investigação da alma humana. Os escritores não só relatam os fatos da experiência, mas intuem também as vivencias psíquicas e intrapsíquicas da experiência humana. O artista escritor ou poeta escutam o inaudível, sentem a comunicação antes da palavra, ou seja, tal como o psicanalista, tem um terceiro ouvido e um terceiro olho, órgãos da realidade psíquica interna, e não receptores sensoriais.
Na escrita de Machado de Assis existe um conto – “O Espelho, esboço de uma nova teoria da alma humana”- publicado em 1882. Este conto marca uma questão ligada à identidade, mostrando a todos nós, os meandros, enganos, nuances do Ser e do Não Ser. Sobre nossa autoestima e nossa capacidade de diferenciar o que é meu, o que é do outro, a noção do interno e do externo, a percepção da nossa própria natureza versus os arranjos que fazemos para escondê-la dos outros e de nós próprios.
Escreve Machado: “Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação... Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira: as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira”.
No conto do Espelho, Jacobina, o personagem tem vinte e cinco anos, é pobre, e acaba de ser nomeado alferes da guarda nacional. Sem pretender me estender no relato do conto (aconselho o leitor procurar ler), esse ser pobre e simples se transfigura completamente. Ele é agora, o Alferes! Todos os amigos e familiares tratavam-no como Sr. Alferes, toda a atenção era dada a ele, principalmente de uma sua tia, D. Marcolina.
Atentem caro leitor, Machado de Assis escreve:” o alferes eliminou o homem... a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa... No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Um dia sua tia Marcolina recebe uma notícia grave: uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus sobrinho! Adeus alferes!”.
Jocobina fica só, só com alguns escravos. Só consigo mesmo, sem as “almas externas” a alimentarem o que interpreto como – sua “personalidade como se”.
Notem alguns trechos falados pelo personagem, quando da perda da sua “condição de alferes”: “Na manhã seguinte senti-me só. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada... e à tarde comecei a sentir uma sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular... Feria-me a alma interior, como um piparote contínuo de eternidade... Não eram golpes de pêndulo, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada.. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico.”
Envolvido nessa vivencia depressiva, sem agora ter um “arcabouço” que pudesse sustentar sua própria pessoa, sua natureza, Jacobina, após vários dias de sofrimento intenso, resolve a angústia de desintegração tornando a vestir a farde de alferes. “Vesti-a, aprontei-me todo, e como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim a alma, exterior.
A alma exterior, intuída na teoria machadiana, sugere toda a influência do meio exterior moldando, edificando modelos de identificação aos bebês. Nossos pais, o ambiente cultural, a herança transgeracional, são fatores de formação da personalidade, além é claro, da nossa própria constituição. No decorrer do crescimento a pessoa introjeta algumas características do meio ambiente, mas dispensa outras, formando assim o seu Eu interior, a “alma interior”, substrato do amor-próprio, da autoestima, do seu ser-si-mesmo, independente do exterior.
No conto, o nosso querido Machado nos faz pensar que Jacobina cuidou pouco de si mesmo, sendo inteiramente dependente da “alma exterior”. Ato contínuo, ficou vazio, sem amor-próprio, sem interioridade consistente. Um Eu frágil, poroso, pobre, totalmente dependente dos “afagos externos” para sobreviver.
Quantas e quantas pessoas nesse mundo, caro leitor, revestem sua pele psíquica de Jacobina! Uns se apoiam em títulos, cargos, funções, mandatos, nome de família, sobrenome, reforços cosméticos, e esquecem de si mesmos. Nascer é um ato de coragem, nascer uma personalidade é um processo de batalhas, escolhas, amor-próprio, convicções pessoais, caso contrário somos eternamente vulneráveis a qualquer opinião alheia.
O bom disso tudo é que o próprio Machado sabia que a pele(negra) não definia ela como pessoa, muito pelo contrário. Vítima do preconceito racial, nosso escritor maior, deu a volta por cima e se desenvolveu como “si mesmo”, e não como alguém que não tinha somente uma alma externa.
Esse conto traz um refletir bem atual: num mundo de carência de objetos para subsidiar identificação em busca de Identidade, é imprescindível lutar por ter uma “alma interna”, caso contrário, os jovens sucumbirão desastrosamente, sendo imitações superficiais da nossa sociedade vazia de princípios éticos. Nunca corremos tanto perigo, como no tempo presente, de abdicarmos da nossa essência, de podermos ser nós próprios, a despeito da influencia cruel, corrupta, malévola dos nossos modelos privados e públicos. Espelho quebrado já não reflete a mesma imagem: é um ato suicida pensar que sobreviveremos somente às custas de sermos ALFERES. “O alferes eliminou o homem”.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London

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