quarta-feira, 5 de março de 2014

O lado bom do pessimismo


Novos autores criticam os gurus da autoajuda e afirmam que o pensamento negativo pode ser um atalho para uma vida feliz

NATÁLIA SPINACÉ
o em 25/02/2014 14h46
ATITUDE Os otimistas diriam que este copo está meio cheio. Mas será que isso os torna mais felizes?  (Foto: David Arky/Corbis/Latin Stock)
Minutos antes de enfrentar a Sérvia na final do campeo­nato mundial de handebol feminino, em dezembro, a seleção brasileira ouviu uma preleção pouquíssimo animadora. “Vocês merecem a medalha de prata”, disse o técnico Morten Souback, ao entregar réplicas feitas de papel-alumínio às atletas. “A Sérvia entra na quadra com o ouro na mão. Vocês estão com medo delas.” Determinadas a desmentir Souback, todas se atiraram em cima do treinador, que carregava uma réplica da medalha de ouro. Derrubaram-no e, em seguida, entraram na quadra e venceram as adversárias. “Elas precisavam ser desafiadas”, diz Alessandra Dutra, a psicóloga do time. O pensamento negativo de Souback deu resultado.

Apesar de bem-sucedida, a preleção de Souback causaria arrepios nos gurus de autoajuda. Ela vai contra os dois principais pilares do gênero: o pensamento positivo em tempo integral e a autoestima inabalável, mesmo diante de situações difíceis. Por trás desses dois preceitos está a crença em que o Universo conspirará a nosso favor se acreditarmos que tudo dará certo. A ideia é antiga. No século XIX, uma corrente conhecida como Novo Pensamento já fazia essa pregação. Era uma reação aos calvinistas, que acreditavam que o trabalho duro e incessante era o caminho para a felicidade. Muito mais tarde, livros como O poder do pensamento positivo, publicado pelo pastor americano Norman Vincent Peale, em 1952, transformaram essa teoria num mercado bilionário de livros e palestras. O exemplo mais conhecido é o livro O segredo, da australiana Rhonda Byrne. Lançado em 2006, o livro prega que, para conseguirmos algo, basta imaginarmos o futuro que desejamos e reafirmarmos constantemente nossa crença nele.


Ao fazer exatamente o oposto do que livros como O segredo pregam, Souback  desafiou a hegemonia do pensamento positivo. E mostrou que está na moda. Alguns lançamentos recentes questionam a eficácia das técnicas defendidas pela indústria da autoajuda. Um deles é o Manual antiautoajuda (Paralela, 216 páginas, R$ 34,90), do jornalista britânico Oliver Burkeman, autor de uma coluna sobre psicologia no jornal The Guardian. Burkeman afirma que as técnicas defendidas pelos autores de livros motivacionais não nos ajudam em nada. Pior: elas atrapalham o caminho para a felicidade e a realização.
7 dicas para ser  um bom pessimista (Foto: ÉPOCA)
“A obrigação de ter de evitar pensamentos pessimistas e ser positivo o tempo todo é impraticável para a maioria das pessoas”, disse Burkeman em entrevista a ÉPOCA. “Quanto mais você tenta evitar um tipo de pensamento, mais ele aparece em sua mente.” Ele propõe um teste. Alguém chega até você e diz: “Nos próximos cinco minutos, pense em qualquer coisa, menos num urso- polar”. Segundo Burkeman, essa missão é impossível. Você poderá até tentar se concentrar em seu trabalho ou no que fará no fim de semana, mas certamente esses pensamentos virão acompanhados da imagem de um urso. As preocupações funcionam como o urso. A partir do momento em que você decide evitá-las e fingir que tudo dará certo, elas o assombrarão a cada instante.


O esforço de repetir que tudo dará certo, mesmo quando não acreditamos nisso, tende a piorar a autoestima. Essa é a constatação de um estudo feito sobre o pensamento positivo forçado – a velha técnica de repetir para si mesmo “eu posso” ou “eu sou capaz” – feito pela psicóloga Joanne Wood, da Universidade de Waterloo, no Canadá. Em sua experiência, Wood pediu que um grupo de pessoas com autoestima baixa escrevesse um diário. Toda vez que um sino tocava, eles tinham de repetir para si próprios a frase “sou uma pessoa amável”. Uma série de métodos de medição do humor constatou que as pessoas ficavam bem menos contentes depois de dizer a frase. Como não se sentiam bem, tentar convencer a si mesmas do contrário só reforçava sua negatividade. O pensamento positivo só agravou a situação.  

O otimismo também nos torna mais ansiosos. Qual o mérito de convencer a nós mesmos de que tudo dará certo quando há inúmeras evidências do contrário? Esse tipo de pensamento nos faz acreditar que, se algo der errado, por mais insignificante que seja, será uma catástrofe. Um otimista que segue os preceitos da autoajuda estará despreparado diante de qualquer adversidade.

Um dos principais méritos do pensamento negativo é nos preparar para o pior. “O fracasso faz parte da vida de qualquer ser humano”, diz Burkeman. “Se soubermos lidar com ele de uma maneira mais calma e elegante, só teremos a ganhar com isso.” O melhor é enca­rá-lo. Esse método serve como um antídoto para a ansiedade. Quando você imagina a pior coisa que pode lhe acontecer, percebe que mesmo o pior dificilmente é irremediável. Um exemplo: a hipótese de perder o emprego pode ser terrível. Mas, pensando friamente, há medidas que podem ser tomadas para encontrar outro. O fim de um relacionamento também pode parecer o fim do mundo, mas nada impede que sejamos felizes sozinhos ou encontremos um novo amor. Quanto mais pensamos num futuro sombrio, menos ele nos assustará.

O pessimismo também pode ser a chave para o sucesso pessoal e profissional. “Quem pensa negativo sempre sabe que tem uma possibilidade de ser vencido, então trabalha para reduzir ao máximo essa possibilidade”, afirma o treinador de basquete Bob Knight, maior vencedor na história da liga universitária dos Estados Unidos e autor de O poder extraordinário do pensamento negativo (Agir, 176 páginas, R$ 19,90). Para ele, reconhecer nossas fraquezas é o primeiro passo para aprender a superá-las. O pessimista cuidadoso, diz Knight, leva vantagem sobre o otimista que acredita que tudo dará certo – e, por isso, deixa de melhorar.


Defensores do pensamento positivo costumam dizer que o pessimismo nos deixa desmotivados. Quem não se sente animado em relação a seu futuro profissional, segundo eles, não consegue produzir resultados satisfatórios. Para os gurus do otimismo,  a motivação é um elemento fundamental para a vida funcionar. Burkeman afirma que a motivação é menos importante do que imaginamos, e que esperar por ela pode empacar nossa vida. “Quem disse que, para começar a fazer algo, você precisa esperar até sentir vontade?”, afirma. “A relutância em relação às tarefas chatas não precisa ser transformada em algo positivo. Você pode fazer algo, mesmo se reconhecer que tem vontade de deixar tudo para depois.” Se todos só fossem trabalhar apenas quando tivessem realmente com vontade de fazer isso, todas as empresas no mundo teriam problemas gravíssimos de produtividade, e a economia já teria entrado em colapso. A indústria da autoajuda superestima a motivação. 
 
EFEITO OPOSTO A equipe brasileira de handebol depois de conquistar o ouro no Mundial. Na preleção, o técnico disse que elas mereciam a prata (Foto: Srdjan Stevanovic/Getty Images)
Apesar da campanha de Burkeman, Knight e seus seguidores, os pessimistas ainda não têm motivos para comemorar. É otimismo demais acreditar que décadas de tradição de pensamento positivo seriam abandonadas só porque novos livros a criticam. O otimismo continua a ter seus defensores, mesmo com ressalvas. “O pensamento positivo serve para estimular a persistência”, diz Hélder Kamei, especialista em psicologia positiva da Universidade de São Paulo. “Mas acreditar que só o otimismo transformará objetivos em realidade é uma ilusão.”  Pesquisas científicas comprovam os méritos do otimismo. Um trabalho da Universidade Harvard analisou mais de 200 estudos sobre os efeitos do pensamento positivo na saúde e comprovou que os otimistas têm menos problemas cardíacos e um risco de derrame menor. Outro estudo, feito pelo Albert Einstein College of Medicine, nos Estados Unidos, investigou as personalidades de mais de 500 pessoas com idade superior a 95 anos e concluiu que ser otimista aumenta a longevidade. Mas ninguém se tornará centenário por repetir os mantras da autoajuda sem acreditar neles. Os benefícios à saúde só são observados em quem é verdadeiramente otimista.


O otimismo, quando sincero e espontâneo, tem o poder de nos tornar mais persistentes e bem-humorados. Ninguém duvida disso. O difícil é ser otimista de verdade, mesmo quando tudo parece dar errado. Entre reconhecer o pessimismo e fingir acreditar nas promessas da autoajuda, a primeira alternativa é a mais saudável. Os conselhos dos gurus do otimismo só funcionam para quem já é otimista (e provavelmente não precisa de conselhos). Ser pessimista não condena ninguém à infelicidade eterna. E, se a infelicidade eterna vier, ao menos os pessimistas terão um consolo. Eles estavam certos.

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