quarta-feira, 23 de outubro de 2013

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA Solidão


CARLOS VIEIRA
“In solis sis tibis turba locis 
(Nesses locais solitaries sê para ti mesmo a multidão” 
M.E.de Montagne (1533-1592)
No dicionário de Houaiss encontra-se a palavra solidão: “insociabilidade, introversão, misantropia, retraimento, isolamento, incomunicação, insulamento, separação, soledade e solitude”. 
Podemos pensar, junto com o psicanalista inglês, D. Winnicott, que a solidão é um estado inicial da vida de uma pessoa. Imaginemos o seguinte modelo: quando se nasce, nasce no vazio, na perda gravidade, na passagem de um ambiente supostamente protegido(útero) para o mundo, para o fora, para respirar um oxigênio pela primeira vez. O espaço entre nascer e ser recebido por alguém que acolhe, é o primeiro espaço, por ínfimo que pareça, um espaço do sozinho, do desamparo inicial. Guimarães Rosa, nosso escritor com a beleza de sua prosa poética, escreveu no “Grande Sertão” pela fala de Riobaldo, que a morte não era o que mais preocupava nem amedrontava, o que mais tinha medo era do nascimento: nascer é perigoso! 
Nascemos dependentes, frágeis, necessitados de alguém que nos acolha, que nos ame e nos receba com sua amorosidade e generosidade. Há aqueles que são bem recebidos, mas existem também aqueles que são recebidos com indiferença afetiva. Isso marca, para toda uma vida, uma experiência traumática de desafeto, desamor, desprezo, falta de autoestima e, consequentemente de solidão. 
Somos alguém que precisa do outro, que o outro, ou melhor, todas as pessoas que tenham a função materna e paterna, nos acolha e forneçam modelos para que sejamos reconhecidos como pessoa, com um ser individual, separado. Shakespeare em seu texto – Julio Cesar – escreveu que ninguém se conhece senão através do olho de outra pessoa. Isso revela que desde pequeno devemos ser reconhecidos e amados, pois o amor e a consideração dos que fazem parte da nossa criação, serão as pessoas que introjetaremos e carregaremos pelo resta da vida. A solidão, a solidão desamparada,é um estado no qual, dentro de nós não existe alguém como representação de amor, companhia e apoio. Quando estamos sozinhos, na realidade estamos conosco, mas também, dentro de nós, com as pessoas que amamos e nos amam. Essa é a razão pelo qual uma pessoa pode estar só, sozinha, em solidão, mas acompanhada, não abandonada. 
Curiosamente, no entanto, a experiência de ficar só, não nos é facilitada e ensinada quando somos infantes. A angústia dos pais, o medo da solidão, a desconfiança de que o filho ou a filha não tenham recursos para ficarem a sós, dificultam proporcionar uma experiência fundamental – a capacidade de estar só sem entrar em pânico. 
Numa bela e poética história de Guimarães Rosa – “Tão-balalão (O Devente) no livro “Corpo de Baile, Volume II, chega a narrar uma experiência de amor com Doralda, esposa de Soropita, a seguinte passagem:” Doralda, sua mulher, nunca pedira para vir junto. O mimo que alegava:- 
“Separaçãozinha breve, uma ou outra, meu Bem, é a regra de primor: tu cria saudade de mim, nunca tu desgosta...” A beleza de intuição Roseana sugere que uma”separaçãozinha” é importante na vida de relação – uma mãe, por exemplo, precisa ser presente e ausente, sempre, pois essa dicotomia presença-ausência vai permitir que a criança aprende conviver com a falta e volta do objeto amado. Desse modo ela vai se acostumando que a vida nos reserva a “falta”, a ausência , tanto quanto a presença e a reaproximação. Note que na fala de Guimarães isso cria espaço para a “saudade”, que não é senão que a presença na ausência. Ficar só, ter um sentimento de abandono quando se está consigo mesmo, é não presença de pessoas dentro de si. É fácil inferirmos daí, que alguém possa desenvolver, às vezes, a tal conhecida “síndrome de pânico” que se caracteriza por um estado de pavor, de terror de se sentir sozinho, abandonado com uma sensação de morte e dissolução do Eu, de si mesmo. 
Montaigne estava coberto de razão, quando escreve em seu belo ensaio – “Sobre a Solidão” que:” É preciso reservar um canto todo nosso, todo livre, e lá estabelecer nossa verdadeira liberdade e nosso retiro e solidão. Aí devemos praticar nossa conversa habitual, de nós para nós mesmos, e tão privada que nenhum convívio ou comunicação com as coisas externas encontre espaço: discorrer e rir, como se sem mulher, sem filhos e sem bens, sem séquito, sem criados, a fim de que, quando chegar o momento de sua perda, não nos seja novidade despensá-los.” Em última instância, se pensarmos com certa profundeza e coragem, estamos sempre “sozinhos-com”, caso contrário todas as nossas relações seriam, relações de fusões, dando como consequência a perda da nossa individualidade. Somos sempre “juntos-separados.
Deixo-o, caro leitor, hoje, com um belo e doloroso poema de Carlos Drummond:
Minha Tristeza de Porcelana
“Minha funda tristeza, minha tristeza/ de todos os momentos/ dize: queres cear comigo?/Hoje estás tão esquiva e tão vulgar,/ tão quotidiana, tão humana,/ minha pobre tristeza./ Ouve: quero beijar-te/ toda/: beijar-te dos pés à cabeça,/ doidamente, num arrepio./ E possuir o teu pequenino corpo,/ teu frágio e pequenino corpo,/ onde se esconde uma alma tiritante de frio./Minha tristeza de porcellana, és como um vazo chinez, onde floresce, longo,/ o lyrio artificial da minha dor./ Se alguém te esphacelasse,/ se alguém, um pobre alguém , te apertasse entre os dedos,/ e eu te perdesse,/ que seria de mim? Não tenho o luxo dos prazeres ricos,/ não tenho o dinheiro que é preciso/ para vestir a minha alma um pyjama de seda/ com que ella passearia o tédio na alameda/ vazia e branca da minha vida./ Vê: eu só tenho dois olhos/ para te olhar, minha tristeza;/ só tenho uma bocca/ para te beijar, minha tristeza;/ só tenho duas mãos/ para apertar as tuas mãos.”
Nota - Mantive a escrita de Drummond, como foi publicado em seu livro-“Os 25 Poemas de Tristeza Alegria(1924)”Editora COSAC NAIF, São Paulo,2012.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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