sábado, 30 de março de 2013

Um ano de trevas?



Posted: 30 Mar 2013 02:24 AM PDT

POR CLÓVIS GRUNER

 Enquanto escrevo este texto, circula nos sites de notícia a informação de que o PSC – Partido Social Cristão – decidiu, à revelia de parcela significativa da chamada “opinião pública” e contrariando, inclusive, solicitação de alguns parlamentares, manter à frente da presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, o pastor Marco Feliciano. Não é exagero retórico: a sua eleição há algumas semanas, deixou-me envergonhado. Agora, sua confirmação na presidência, quando muitos de nós esperávamos pela sua renúncia, faz aumentar a sensação de derrota e impotência. No dia de sua eleição, um aluno me disse que é só um ano. Respondi que, se fosse um único dia, já seria demais. 365 dias é simplesmente intolerável.


E não se trata das convicções religiosas do deputado-pastor. A princípio, não há nenhum problema em se eleger um religioso à câmara dos deputados, que conta entre seus membros com ex-jogadores de futebol, empresários, latifundiários, negros, trabalhadores rurais, sindicalistas, feministas, gays, etc... É um pressuposto das democracias modernas que o poder legislativo seja, por assim dizer, uma amostra da diversidade de um país e de seus interesses. E se os gays, por exemplo, contam com Jean Willys como seu porta-voz, não haveria equívoco algum em Marco Feliciano ser, além de deputado, evangélico.


DISCURSO DE ÓDIO - O problema não são suas convicções religiosas, mas ele valer-se delas para justificar seu discurso de ódio contra as mesmas minorias das quais passou a ser, eleito presidente da CDH, o principal representante no poder legislativo. Oras, não há absolutamente como esperar de um deputado e pastor que já deixou claro seu asco e intolerância contra negros e gays, principalmente; não há como esperar de um deputado e pastor que em sua prática, seja legislativa ou missionária, propaga o ódio, reproduz o medo e legitima a violência contra minorias – notadamente contra os gays –, que ele seja capaz de representar estas mesmas minorias naquilo que lhes é fundamental: a garantia de seu direito mínimo, qual seja, o de simplesmente existir.

Aliás, o tom de como funcionará a comissão a partir da presidência de Feliciano já foi dado nas primeiras sessões, com a cassação ao direito de palavra, entre outros absurdos, entre eles a manifestação do deputado Jair Bolsonaro, defensor da ditadura e da tortura, e também ele notório homofóbico, agora maioria em uma comissão que, nos últimos anos, havia se tornado fórum privilegiado de discussão e defesa da diversidade: “Não assistiremos mais aqui seminário LGBT infantil, com crianças sendo estimuladas uma a fazer sexo com a outra.” E não, não vou lembrar aqui do cartaz infeliz que o mesmo deputado empunhou em pleno congresso: ele sintetiza o estado de coisas a que chegamos.


A RESPONSABILIDADE DO PT - Por outro lado, insisto em lembrar que grande parte da responsabilidade pela condução de Feliciano à presidência da Comissão é do PT. E não se trata apenas de ressentimento ou frustração – embora, admita, há um pouco de ambos quando faço o balanço dos frutos que estamos a colher das alianças que o partido vem fazendo desde a última década. Sim, porque não basta recordar que a presidência da comissão já foi do PT. Nem que as lideranças partidárias decidiram praticamente franqueá-la ao PSC – partido da base governista – porque, interessados em comissões certamente mais estratégicas do ponto de vista político-partidário (quiçá, eleitoral), não viram problema algum em lotear a penúltima comissão a ser escolhida entre as lideranças partidárias.

A atitude, entre outras coisas, serviu para demonstrar a profunda indiferença que tem a maioria de nossos parlamentares, inclusive parte da bancada de esquerda, pelo tema dos direitos humanos e das minorias. Igualmente, não basta reafirmar que foi em grande parte graças ao PT que não apenas a presidência da Comissão foi assegurada a um partido que pouco ou nada tem a ver com ela. Ainda mais grave, foi conferir a PSC ampla e irrestrita autonomia para indicar um parlamentar de sua bancada para presidi-la.


TONS DE FARSA - Isto é muito, mas ainda não basta. A eleição de Marco Feliciano e sua agora permanência como presidente, coroa em tons de farsa o que começou como tragédia: em 2002, como parte da estratégia eleitoral que visava a eleição de Lula, tratou-se não apenas de amenizar-lhe a face e o discurso, mas de ampliar o leque de alianças, incluindo entre os que apoiavam o então candidato o Partido Liberal que, apesar do nome, era à época o principal braço parlamentar das igrejas evangélicas de matriz fundamentalista, entre elas a famigerada Universal do Reino de Deus. Mais recentemente, em 2010, enquanto a militância petista e demais eleitores de Dilma Roussef – eu inclusive – denunciavam, e com razão, a guinada conservadora do PSDB e de José Serra, a hoje presidenta rezava com Gabriel Chalita, beijava a mão de padres e bispos católicos, pedia e em alguns casos ganhou, o apoio de pastores evangélicos – entre eles, Marco Feliciano.

Mas a lamentável condução de Feliciano ao talvez único lugar no parlamento onde ele, definitivamente, não deveria estar, não apenas mancha ainda mais a já maculada reputação do congresso brasileiro: ela fere e corrompe um princípio caro às sociedades modernas e democráticas, que é o da laicidade do Estado. Em texto onde distingue o ‘laicismo’ de uma ‘cultura laica’, o pensador italiano Norberto Bobbio assim define a segunda: “El espiritu laico no es en sí mismo una nuevacultura, sino la condición para la convivencia de todas las posibles culturas. La laicidad expresa más bien um método que um contenido.”


SEDIAR A IDADE MÉDIA - A manutenção de Marco Feliciano na presidência da CDH, junto com a crescente influência que igrejas, principalmente evangélicas – embora não só – e suas lideranças tem exercido junto à instâncias partidárias e governamentais, coloca em risco “as condições para a convivência de todas as possíveis culturas” que é, ao concordarmos com Bobbio, elemento fundamental de um Estado e uma sociedade laicos. Já se disse, em tom de galhofa, que se o Brasil não for bem sucedido ao sediar, em 2014, a Copa do Mundo, pelo menos estaremos prontos para sediar a idade média. Já não consigo mais rir disso que, para mim, deixou de ser uma brincadeira. Não, certamente não acho que voltaremos ao medievo, tampouco acredito, como historiador, que se pode explicar dez séculos de história recorrendo a alguns chavões reducionistas, tais como os de que vivemos, no período, “mil anos de escuridão”.


O que me preocupa e amedronta é que estamos a assistir, impotentes e em alguns casos resignados, a escalada da intolerância, do ódio e do medo onde deveríamos experimentar, em pleno século XXI, uma sociedade mais plural e mais capaz de conviver na e com a diversidade. O que me preocupa e amedronta é assistir, praticamente imobilizado e impassível, o fundamentalismo religioso pautar a agenda política e usar o parlamento como espaço de legitimação do processo crescente de estigmatização e demonização do “outro” – o gay, principalmente, mas também o negro, o pobre, as mulheres feministas, etc... –, estigmatização e demonização de que o fundamentalismo religioso talvez não seja o único, mas é inegavelmente o principal artífice. O que me preocupa e amedronta não é o ano que passaremos com o deputado e pastor Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, mas o quanto retrocederemos neste ano no pouco que já conquistamos até aqui e, não menos importante, a obscuridade do depois.

Clóvis Gruner é historiador e professor universitário

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