CARLOS VIEIRA
Relendo um profundo texto de Guimarães Rosa – O Espelho – em “João Guimarães Rosa – Primeiras Estórias, Editora Comemorativa 40 anos, Nova Fronteira, 2006”, tive e senti susto, desconforto emocional, perplexidade e um sentimento de angústia e curiosidade pela “experiência” de Rosa ao narrar suas percepções e intuições frente a um espelho, ou a si mesmo.
O texto é uma conversa do autor com um personagem que ele não nomeia mas que narra sua experiência: “– SE QUER SEGUIR-ME, NARRO-LHE; NÃO UMA AVENTURA, mas experiência, a que nos induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha ideia do que seja na verdade – um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.”
O que vejo diante de um espelho? Do ponto de vista óptico vejo minha imagem invertida, do jeito que sou sensorialmente, com os “olhos da cara”, e não necessariamente com “os olhos da minha mente”. O espelho é a entrada para a minha curiosidade sobre mim mesmo; é uma viagem nem sempre agradável, mas que requer coragem e ousadia.
Para Narciso, tudo que não é espelho é feio, cantou um dia Caetano Veloso. No mito de Narciso existe uma peculiaridade que quase sempre não se percebe: angustiado com o fato de que Narciso não poderia se olhar, caso se destruiria, seu pai, ao pedido do filho lhe entrega um “espelho quebrado”. Mesmo quebrado, defeituoso, Narciso nega o que enxerga e, ainda assim continua vendo sua beleza e perfeição.
A perfeição é um ideal, uma fantasia, ou uma estratégia defensiva para que eu não possa tolerar as minhas imperfeições. É óbvio que toda pessoa gostaria de ser perfeito, completo, mas a dimensão humana é de “anjos caídos” e não de “anjos celestiais”. Por exemplo, quando eu nasço estou denunciado também a minha finitude, a minha mortalidade, minha limitação, fragilidade e vulnerabilidade.
Olhar para dentro de mim é me reconhecer como um animal humano. Amor, ódio, inveja, ciúme, competição, perversidade, compaixão, generosidade, ressentimento, sede de vingança quando ferido, fraternidade, impulsos homicidas, suicidas, enfim, essa é a natureza que se ama e se odeia diante do espelho.
É preciso ter a coragem, sem enlouquecer nem se apunhalar, de ver e sentir o que escreve Rosa em seu texto: “...E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem da viciação de origem, defeitos que cresceram e a que se afizeram, mais e mais... os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim... Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por detrás de mim – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio... quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito... Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e se o senhor vê, então, que de fato, só se odeia é a si mesmo. Os olhos contra os olhos... E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?”
A linda prosa poética de Guimarães Rosa tem o respeito pela beleza e pela feiura, porque tanto uma como outra são partes do Belo. É claro que não somos nem seremos nunca o nosso Ideal. O espelho mostra o conjunto de virtudes e defeitos, e não ilusão que só sou feio ou belo. O que faz colírios para os meus olhos é poder ver, saber, sentir e admitir que as várias “partes do meu Eu”, ainda que paradoxais ou contraditórias me definem como um ser especial, eu mesmo, diferente de qualquer outra pessoa. E naquilo que sou original, eu posso enxergar por detrás do espelho e não ficar sofrendo eternamente de baixa autoestima (depressão). Meu desejo é ter autoestima. Baixa autoestima e hiper-estima são extremos absolutos de uma mentira, de uma ilusão que o Espelho não alimenta. O que a psicanálise e outras técnicas psicoterápicas mostram, é a realidade interior, o que mostra do espelho da mente, não aquele que está diante de mim. Por isso se detesta tanto e se resiste ao trabalho psicoterápico!
Não sou contra a cirurgia plástica, sou avesso à epidemia de cirurgias como um meio de negar o que se é, até porque não resolve. A maior plástica é a da alma. Nela encontro minha natureza, meu mal de raiz, como cantava Vinicius de Moraes. Aí, sabendo disso, posso cuidar para melhorar minha imagem, sem sofrer à procura da perfeição, mas viver acompanhado de mim, como sou, Olhar-se no Espelho é a porta de entrada para ficar de bem comigo mesmo, mesmo que em algum momento tenha ódio de não ser quem eu queria que fosse.
O caminho para se cultuar a sanidade é aquele que me faz tolerar o que sou, a minha natureza; fazer transformações para me desenvolver, crescer, e admitir que não nasci para ser um Mito, o Mito do Narciso. Caso contrário, minha vida será um eterno vazio, uma eterna tristeza e uma eterna necessidade de consumir tudo e todos na busca pela Beleza Absoluta, pela Plenitude Eterna, atributos dos Divinos e não dos humanos.
O texto é uma conversa do autor com um personagem que ele não nomeia mas que narra sua experiência: “– SE QUER SEGUIR-ME, NARRO-LHE; NÃO UMA AVENTURA, mas experiência, a que nos induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha ideia do que seja na verdade – um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.”
O que vejo diante de um espelho? Do ponto de vista óptico vejo minha imagem invertida, do jeito que sou sensorialmente, com os “olhos da cara”, e não necessariamente com “os olhos da minha mente”. O espelho é a entrada para a minha curiosidade sobre mim mesmo; é uma viagem nem sempre agradável, mas que requer coragem e ousadia.
Para Narciso, tudo que não é espelho é feio, cantou um dia Caetano Veloso. No mito de Narciso existe uma peculiaridade que quase sempre não se percebe: angustiado com o fato de que Narciso não poderia se olhar, caso se destruiria, seu pai, ao pedido do filho lhe entrega um “espelho quebrado”. Mesmo quebrado, defeituoso, Narciso nega o que enxerga e, ainda assim continua vendo sua beleza e perfeição.
A perfeição é um ideal, uma fantasia, ou uma estratégia defensiva para que eu não possa tolerar as minhas imperfeições. É óbvio que toda pessoa gostaria de ser perfeito, completo, mas a dimensão humana é de “anjos caídos” e não de “anjos celestiais”. Por exemplo, quando eu nasço estou denunciado também a minha finitude, a minha mortalidade, minha limitação, fragilidade e vulnerabilidade.
Olhar para dentro de mim é me reconhecer como um animal humano. Amor, ódio, inveja, ciúme, competição, perversidade, compaixão, generosidade, ressentimento, sede de vingança quando ferido, fraternidade, impulsos homicidas, suicidas, enfim, essa é a natureza que se ama e se odeia diante do espelho.
É preciso ter a coragem, sem enlouquecer nem se apunhalar, de ver e sentir o que escreve Rosa em seu texto: “...E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem da viciação de origem, defeitos que cresceram e a que se afizeram, mais e mais... os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim... Desde aí, comecei a procurar-me – ao eu por detrás de mim – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio... quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito... Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e se o senhor vê, então, que de fato, só se odeia é a si mesmo. Os olhos contra os olhos... E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?”
A linda prosa poética de Guimarães Rosa tem o respeito pela beleza e pela feiura, porque tanto uma como outra são partes do Belo. É claro que não somos nem seremos nunca o nosso Ideal. O espelho mostra o conjunto de virtudes e defeitos, e não ilusão que só sou feio ou belo. O que faz colírios para os meus olhos é poder ver, saber, sentir e admitir que as várias “partes do meu Eu”, ainda que paradoxais ou contraditórias me definem como um ser especial, eu mesmo, diferente de qualquer outra pessoa. E naquilo que sou original, eu posso enxergar por detrás do espelho e não ficar sofrendo eternamente de baixa autoestima (depressão). Meu desejo é ter autoestima. Baixa autoestima e hiper-estima são extremos absolutos de uma mentira, de uma ilusão que o Espelho não alimenta. O que a psicanálise e outras técnicas psicoterápicas mostram, é a realidade interior, o que mostra do espelho da mente, não aquele que está diante de mim. Por isso se detesta tanto e se resiste ao trabalho psicoterápico!
Não sou contra a cirurgia plástica, sou avesso à epidemia de cirurgias como um meio de negar o que se é, até porque não resolve. A maior plástica é a da alma. Nela encontro minha natureza, meu mal de raiz, como cantava Vinicius de Moraes. Aí, sabendo disso, posso cuidar para melhorar minha imagem, sem sofrer à procura da perfeição, mas viver acompanhado de mim, como sou, Olhar-se no Espelho é a porta de entrada para ficar de bem comigo mesmo, mesmo que em algum momento tenha ódio de não ser quem eu queria que fosse.
O caminho para se cultuar a sanidade é aquele que me faz tolerar o que sou, a minha natureza; fazer transformações para me desenvolver, crescer, e admitir que não nasci para ser um Mito, o Mito do Narciso. Caso contrário, minha vida será um eterno vazio, uma eterna tristeza e uma eterna necessidade de consumir tudo e todos na busca pela Beleza Absoluta, pela Plenitude Eterna, atributos dos Divinos e não dos humanos.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.
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