segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Como os juízes do Supremo salvaram o julgamento do mensalão - e o que muda no país depois da sentença de prisão para José Dirceu


Fez-se justiça

15:54:09


Joaquim Barbosa sabia que falaria para a história. E, assim que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto, passou-lhe a palavra, às 15 horas do dia 12 de novembro de 2012, uma segunda-feira nublada em Brasília, ele falou. Perto dali, no bosque que ladeia a corte, assim como nos demais jardins e muitos recantos verdes de Brasília, as cigarras cantavam incessantemente, com a estridência usual, a melancólica ária que domina as primaveras da capital da República. O barulho das cigarras, porém, não penetrava o Tribunal. Lá dentro, nos primeiros minutos da 45â sessão de julgamento do mensalão, havia apenas a voz de Joaquim Barbosa, o ministro relator do caso. Joaquim - costume gris, empertigado na cadeira ortopédica preta, rosto contrito - era inevitavelmente a imagem da abnegação. A dor revelava-se ao Brasil em cada espasmo muscular que lhe acometia, amiúde, como a sugerir que ele não fosse senhor do próprio corpo. Sobrava-lhe a voz, e com ela preencheu o plenário: ...

- Passo a examinar o chamado núcleo político. José Dirceu colocou em risco o próprio regime democrático, a independência dos Poderes e o sistema republicano, em flagrante contrariedade à Constituição Federal. Restaram diminuídos e enxovalhados pilares importantíssimos da nossa institucionalidade - disse, com os olhos miúdos cravados no voto. - Fixo a ele a pena-base em dois anos e seis meses de reclusão, tal como fizera com o réu Marcos Valério. Considerado o fato de José Dirceu ter desempenhado um papel proeminente nas atividades de todos os réus, especialmente os do núcleo político, aumento a pena em um sexto: pena que torno definitiva em dois anos e 11 meses de reclusão.

Aproximava-se o fim. Nos quase quatro meses do julgamento mais importante da história do Supremo, os 11 ministros - ou dez, a partir da aposentadoria compulsória do ministro Cezar Peluso, por idade, em setembro - já haviam reconhecido, por maioria e com base nas abundantes provas dos autos, que uma quadrilha liderada pelo ex-ministro da Casa Civil José Dirceu estabelecera um esquema de suborno para que parlamentares apoiassem o governo do Partido dos Trabalhadores, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva - um esquema que se convencionou chamar de mensalão. Os ministros entenderam que 25 dos 38 réus (13 foram absolvidos) deveriam ser condenados por crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Faltava apenas definir o tamanho das penas de cada um, no complicado processo da dosimetria, repleto de números e nuances jurídicas. Era o que começava a fazer Joaquim em relação a Dirceu. No fim da dosimetria, sua pena atingiria o total de dez anos e dez meses, acrescida de multa de R$ 676 mil. Pela primeira vez na história do Brasil, ao menos desde a redemocratização de 1988, um político poderoso era condenado por corrupção - e, salvo reviravolta cada vez mais improvável, cumprirá parte da pena na cadeia. Condenado, assim como os demais réus, num julgamento feito à luz do dia, transparente e com o mais amplo direito à defesa.

Dadas a estatura dos envolvidos - protagonistas de um partido político que ocupa o poder até hoje - e a natureza do crime central - a compra de um poder por outro, o que constitui por si só um atentado contra a democracia -, o julgamento do mensalão provocou questionamentos apaixonados. Teria sido um julgamento político? Seu resultado deixará um legado para o país? Ou foi apenas consequência de uma conjunção de fatores muito especial - um “julgamento de exceção”, na avaliação de alguns juristas?

Os fatos que respondem a essas perguntas mostram que o país assistiu pela televisão, nos últimos meses, a um julgamento que só se tornou possível graças aos lentos avanços institucionais do país e, em especial, do STF (leia mais na página 46). Um julgamento, também, que só veio a bom termo, ao menos até agora, pelas virtudes apresentadas por seus protagonistas nos momentos mais críticos do caso - aqueles momentos nos quais a discórdia bordejou o conflito, nos quais as diferenças transbordaram as ideias e adernaram os homens. Um desses momentos viria a acontecer naquela segunda-feira, quando se definiam as penas de José Dirceu, assim que a voz de Joaquim Barbosa cedesse lugar às demais.

Vias de fato

O voto de Joaquim Barbosa durou exatamente cinco minutos. Mas surpreendeu muitos ministros. A maioria esperava que ele prosseguisse definindo a pena do núcleo financeiro. Houve estratégia no movimento surpreendente de Joaquim. Ele queria votar as penas de Dirceu, do ex-presidente do PT José Genoino e do ex-tesoureiro Delúbio Soares antes que o ministro Ayres Britto se aposentasse, fato que aconteceria na quinta-feira seguinte, dia 15 de novembro. Àquela altura, após tantos meses de julgamento, era conhecida a posição de cada ministro - e Ayres Britto votava quase sempre em sintonia com Joaquim. Joaquim, portanto, não queria arriscar ter um voto a menos na última votação mais importante do julgamento. É uma prerrogativa do relator estabelecer a ordem do que será votado. Essa prerrogativa não impede que outros ministros se sintam incomodados com o truco -nenhum mais do que Ricardo Lewandowski, o revisor do processo e nêmese de Joaquim Barbosa. “Pelo que entendi, inclusive os jornais anunciaram, a votação de hoje seria do núcleo bancário. Não estou entendendo por que estamos iniciando com o núcleo político. Inclusive, o advogado não está presente”, disse Lewandowski. “A qualquer momento, Vossa Excelência surpreende a corte, surpreende o revisor. Eu vim de São Paulo nesse instante, saí de uma banca de mestrado, se eu soubesse...” Joaquim Barbosa o cortou: “Não nos interessa de onde Vossa Excelência veio”.

Seguiu-se mais uma das altercações entre os dois:

- A surpresa, ministro, é a lentidão ao proferir os votos. Esse joguinho, ministro - disse Joaquim.

- Que joguinho? Vossa Excelência, por favor, se explique - reagiu Lewandowski.

- Vossa Excelência não tem voto neste caso. Vossa Excelência não tem voto - disse Joaquim. Como Lewandowski absolvera Dirceu, não teria direito a participar da definição da pena dele.

- Eu terei em seguida. Não é possível procedermos dessa forma. A metodologia tem de ser combinada com o revisor também - disse Lewandowski, dirigindo-se a Ayres Britto. - Toda hora estou sendo surpreendido, senhor presidente. É o fatiamento, são sessões extraordinárias, é o cancelamento das turmas, não é possível!

A discussão prosseguiu. E piorou:

- Eu é que estou surpreendido com a ação de obstrução de Vossa Excelência - afirmou Joaquim, tremendo de dor e nervosismo na cadeira ortopédica.

- Senhor presidente, Vossa Excelência, por favor, consigne isso em ata, porque eu considero isso algo muito grave - respondeu Lewandowski.

- Mas eu estou falando a verdade - disse Joaquim.

- Então, eu me retiro do plenário - disse Lewandowski, levantando-se sem olhar para trás.

Foi uma das cenas mais dramáticas do julgamento. Todos estavam perplexos. Como revisor, Lewandowski desempenha um papel fundamental no julgamento. Sem ele, não há julgamento: tudo tem de parar. “Ele está a fim de obstruir mesmo, olha aí”, disse Joaquim. “Estou cansado, senhor presidente, desse jogo de empurra-empurra.” Na sala do cafezinho, perto do plenário, Lewandowski não se conformava. “Isso é um desrespeito! Custava me avisar?”, dizia ele aos assessores. “Assim eu vou embora.” Enquanto Lewandowski cogitava abandonar o julgamento, a dosimetria de Joaquim para Dirceu prevalecia nos dois crimes a que ele foi condenado. Chegou aos dez anos e dez meses de prisão. Em seguida, Genoino recebeu pena de seis anos e 11 meses. Para definir a pena de Delúbio, a corte precisava de Lewandowski - Joaquim precisava de Lewandowski. Como o revisor condenara Delúbio, ele teria de votar em seguida. Os ministros, portanto, precisavam de Lewandowski imediatamente. Alguém precisaria ceder. Coube a Ayres Britto conversar com Lewandowski no intervalo da sessão. Sempre Britto: desde o começo do julgamento, a diplomacia e a lhaneza de Britto estavam de plantão, serviço extra provocado pelos excessos verbais, sobretudo do mercurial relator Joaquim Barbosa.

Essas virtudes de Britto provaram-se essenciais para que o julgamento não fosse interrompido - e o Supremo desmoralizado - logo na 1 lâ sessão, em 16 de agosto. Irado com uma questão de ordem, Lewandowski foi ter com Joaquim no intervalo da sessão. Era possível ouvir os berros de ambos na sala contígua. Joaquim e Lewandowski foram se aproximando um do outro, trocando impropérios - até que quase saíram no tapa. O ministro Luiz Fux, lutador de jiu-jítsu, segurou Joaquim, enquanto Britto puxava Lewandowski para um canto. “Eu abdico da revisão! Não participo mais desse processo!” gritava Lewandowski.

Ele sabia, contudo, que não apenas seu legado como a história do Supremo estavam em jogo nesse julgamento. Em muitos momentos, Lewandowski poderia ter impedido o julgamento. Poderia não ter entregue seu voto em julho, como determinara a corte; poderia ter abandonado a revisão depois de quase “ir às vias de fato” com Joaquim Barbosa, como veio a definir o episódio a amigos; e poderia, finalmente, não voltar ao plenário após o intervalo daquela sessão em que os ministros precisavam imediatamente dele. Mas ele voltou. Graças, em parte, aos dons diplomáticos de Britto. Mas, sobretudo, graças a sua própria capacidade de ceder quando outros não o fariam - como Joaquim. Nisso, e ao verbalizar críticas aos procedimentos do julgamento que encontravam algum eco fora do Supremo, Lewandowski encontrou seu lugar na história que será escrita sobre o mensalão.

Justiça, simplesmente justiça

O julgamento do mensalão foi justo até aqui? Fiz essa elementar pergunta aos ministros do Supremo - e, nenhum, mesmo que reservadamente, mesmo os que foram vencidos em muitos pontos do julgamento, expressou qualquer reserva quanto à correção do processo. Alguns têm críticas, duras até, mas sempre críticas a questões relativamente periféricas no julgamento (como o tamanho das penas ou como se redigirá o acórdão com a decisão final dos ministros). Na essência, a maioria concorda: houve crimes no mensalão, e as pessoas que participaram desses crimes são responsáveis, em maior ou menor grau, pelo que fizeram - por isso têm de ser condenadas. Todos puderam apresentar provas e argumentos de sua inocência. A maior corte do país parou por um semestre para debater, aos olhos de todos, quem era inocente e quem era culpado. Fez-se justiça, até o momento, não porque o Supremo tenha condenado Dirceu e outros líderes políticos à cadeia. Se Dirceu for de fato preso, o país não terá mudado do dia para noite. Nem essa eventual prisão deve ser observada com triunfalismo ou aplauso.

Primeiro, porque, como observou o ministro Cezar Peluso em sua última sessão no Supremo, depois de votar pela condenação do ex-deputado João Paulo Cunha, do PT, “nenhum juiz verdadeiramente digno de sua vocação condena ninguém por ódio. Nada mais constrange o magistrado do que ter

que infelizmente condenar um réu em matéria penal”. E, segundo, porque os avanços na Justiça são lentos, caminham devagar, ao sabor de pequenas conquistas que mudam o campo de ação dos homens - como quando se consegue aprovar uma lei como a da Ficha Limpa, ou quando, meio que por acaso, a Suprema corte do país consegue criar uma TV própria, que, com o tempo, levou a lida dos ministros diretamente à casa dos cidadãos. “Alguns ainda criticam a TV, dizem que serve sobremaneira para aguçar a vaidade dos ministros”, afirma o ministro Marco Aurélio Melo, em cuja presidência, há dez anos, criou-se a TV. “Mas não podemos nos esquecer de que o direito rege a vida em sociedade, e de que a sociedade ganha ao acompanhar o direito em ação. É o que ocorre na transmissão ao vivo das sessões do Supremo. Ficamos mais próximos da sociedade e, assim, nossos semelhantes podem nos acompanhar - e cobrar.”

Poucos lembram-se da construção institucional que permitiu esse julgamento. Uma vitória veio em dezembro de 2001, quando o Congresso promulgou emenda à Constituição que permitiu ao Supremo processar criminalmente deputados e senadores sem autorização prévia da Câmara dos Deputados e do Senado. Autor de um dos projetos que resultaram na emenda, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) lembra que, desde o final dos anos 1970, havia a intenção de aprová-la, mas os parlamentares resistiam. “Era um poder que os parlamentares não queriam perder. Corporativismo mesmo”, afirma. “A lei só saiu depois de muita pressão popular.”

Os avanços também aconteceram no domínio das leis. A já famosa teoria do domínio do fato, que ajudou a condenar José Dirceu, nasceu no final dos anos 1930 na Alemanha, a partir dos estudos do jurista e filósofo do Direito Hanz Welzel. Surgiu - e evoluiu - pela necessidade de processar os crimes cometidos por Estados totalitários ou por organizações criminosas complexas. Na América do Sul, em meados dos anos 1980, a teoria foi aplicada em processos contra militares acusados de crimes políticos, como observam os professores Francisco Munhoz Conde, da Universidade Pablo Olavide, na Espanha, e Hector Olasolo, da Universidade de Utrecht (na Holanda), autores de um artigo sobre o assunto. Em 19 de março do ano passado, José Dirceu comemorou em seu blog uma decisão baseada na teoria que o condenaria um ano depois. A Justiça chilena ratificara a condenação do general Manuel Contreras a cinco anos de prisão. Contreras foi o chefe da Dina, a cruel polícia política da ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990) no Chile. “Faz justiça, simplesmente justiça”, afirmou Dirceu.

Em 24 de agosto de 2012, outra vez em seu blog, Dirceu elogiou a Justiça argentina por julgar o ex-presidente Reynaldo Bignone e outros militares acusados de prender, torturar e matar combatentes da ditadura argentina (1976-1983). Talvez Dirceu não saiba, mas a condenação de Contreras e a de Bignone também se devem à aplicação da teoria do domínio do fato. Mas José Dirceu, apesar do que dizem seus defensores, não foi condenado por uma teoria. Foi condenado pelas provas.

Baú de mágoas

Naquela tarde de segunda-feira, a última sob a suave Presidência de Britto, a última em que seus talentos de conciliação seriam necessários para salvar, mais uma vez, o julgamento, os ministros não estavam preocupados com a teoria do domínio do fato ou com as invectivas dos advogados dos réus. Estavam ocupados demais em garantir que Lewandowski voltasse, mais uma vez, do intervalo. Para os brasileiros que acompanham com interesse o julgamento, mas necessariamente de longe, pode ser difícil compreender por que há tantos embates entre os ministros - a maioria aparentemente envolvendo questiúnculas, detalhes irrelevantes. Eles sabem por quê. Naquele momento, Britto sabia - vira, acompanhara durante meses - que as dores de Joaquim são um tormento de tal gravidade que, em alguns momentos, ele poderia desistir do caso. Britto, portanto, via sob outra luz os rompantes coléricos de Joaquim. E se lembrava de quando perguntou o que ele, Britto, poderia fazer para lhe ajudar a tocar o caso. Joaquim pediu apenas uma maca - e um massagista para os intervalos. Num desses intervalos, Britto foi ter com Joaquim. Encontrou o colega com os dois pés imersos num balde de gelo, tentando não gemer de dor.

Foi lembrando os sacrifícios - uns maiores, físicos; outros menores, ideológicos - dos ministros durante o julgamento que Britto conquistou, mais uma vez, Lewandowski. “Mas eu só volto com um desagravo, Britto”, disse Lewandowski. Ele, como os demais, acumulara mágoas demais no percurso de tantas sessões. “As pessoas de fora não entendem, e às vezes até ridicularizam, mas todos os data venia e ‘Vossas Excelências’ têm a função de garantir e, às vezes, restabelecer a concórdia entre os ministros”, diz um dos mais antigos integrantes da corte. “Todos precisam de afagos, ainda mais diante de debates duríssimos. Senão sobram muitas mágoas.” O presidente da corte tem o dever de manter as inevitáveis mágoas num nível civilizado e passageiro. Por isso Britto aquiesceu, e daria a Lewandowski o desagravo que ele queria. Quando os ministros retomaram a sessão, Britto disse: “Tenho de cumprimentar o retorno de Sua Excelência, o ministro Ricardo Lewandowski, que reassume seu indispensável e altaneiro papel de revisor desse processo. Vossa Excelência e o ministro Joaquim Barbosa, para mim, só merecem aplausos e elogios”.

Deu certo. O julgamento estava, mais uma vez, salvo. Delúbio recebeu uma pena de oito anos e 11 meses e R$ 325 mil de multa. Joaquim, aquele que ainda não cedeu, assume a presidência na quinta-feira. Ele conseguirá controlar seus excessos e pacificar os demais ministros? Antes de sair do Supremo, Britto deixou, em seu discurso, um recado - suave, como sempre - ao sucessor: “Não temos direito a mau humor. Entendo que nossas rugas aumentam para que nossas rusgas diminuam. Aprendi com meu pai. E dele também a frase que diz que o juiz não deve impor respeito. O juiz deve impor-se ao respeito. Eu sempre disse para mim que derramamento de bílis e produção de neurônios não combinam”. Para continuar fazendo história, não bastará mais a Joaquim apenas falar.

Por: Diego Escosteguy com Flávia Tavares, Marcelo Rocha, Murilo Ramos e Leandro Loyola
Fonte: Revista ÉPOCA.com - Edição nº 757 - 19/11/2012

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