No melhor estilo “contra tudo o que está aí”, a Argentina cria até dez tipos de cotação do dólar e espalha insegurança em relação ao futuro do país
A presidente Cristina Kirchner: as restrições aos dólares derrubaram sua popularidade
São Paulo - Em termos de política econômica, a história argentina é pródiga em delírios populistas — de Juan Domingo Perón a Cristina Kirchner. Isso explica por que, no quesito finanças pessoais, os argentinos são, há décadas, famosos pelo apego à moeda americana, uma tentativa de se defender dos devaneios heterodoxos do ocupante da vez da Casa Rosada.
Recentemente, a conjunção dessas duas características criou uma situação insólita. NaArgentina de hoje, há cerca de dez cotações diferentes para o dólar, cujo valor pode variar mais de 100%. Há o dólar oficial — mas, para a maioria, ele é quase uma ficção. Os produtores de soja têm o próprio câmbio.
Quem compra uma casa paga o valor correspondente a uma cotação própria do setor imobiliário. Há até o que se convencionou chamar de “dólar cassino”. Funciona assim: os argentinos vão às casas de jogos do Uruguai e do Paraguai para comprar fichas pagas em pesos argentinos e imediatamente trocá-las por dólares, tudo sem sair do cassino.
Com isso, os “jogadores” pagam 5,51 pesos por dólar, cotação bem inferior à praticada nas casas de câmbio de Buenos Aires, atualmente em 6,36 pesos. O sonho de todos é conseguir a moeda americana pelo valor oficial — 4,67 pesos. Mas ela vale apenas para quem vai sair do país.
A transação ocorre apenas dois dias antes do embarque, mediante a apresentação da passagem aérea. A quantidade é determinada pelo funcionário da Receita Federal argentina com base no tempo de viagem e, segundo alguns, no seu humor nesse dia.
Fuga de capitais
A multiplicidade de cotações cresce à medida que o governo cria mais restrições no mercado de câmbio, resultado da escassez de dólares no país. Desde 2007, quando Cristina sucedeu seu marido, Néstor (morto em 2010), na Presidência, cerca de 70 bilhões de dólares deixaram o país, com os investidores assustados com seus delírios populistas.
Muito dinheiro saiu e quase nada entrou. A Argentina, prestes a perder o posto de segunda maior economia da América do Sul para a Colômbia, é apenas o quinto destino a receber recursos internacionais na região. As reservas em dólares são de 47 bilhões, um terço do considerado ideal ante os compromissos externos — e isso num momento de liquidez abundante no mercado internacional.
Já que o dinheiro não vem, a escolha de Cristina é tentar impedir que ele saia. Seu governo ergueu mais barreiras protecionistas (cerca de 200) para encarecer as importações e dificultou a venda de dólares. Em agosto, por exemplo, a Receita criou um imposto de 15% sobre as operações internacionais com cartão de crédito.
À medida que aumentam as dificuldades, cresce também o envio de divisas para o exterior. Mesmo antes das restrições, estima-se que os argentinos tivessem 400 bilhões de dólares aplicados fora — o equivalente a todas as riquezas geradas ao ano.
Cristina, claro, nega que haja o que a mídia argentina classifica de cepo cambiario, ou “prisão cambial”, numa tradução livre. “Acabei de ver muitos argentinos em Las Vegas e aqui mesmo na Universidade Harvard. Não me parece que haja falta de dólares”, disse ela no final de setembro, durante uma palestra em Cambridge, nos Estados Unidos.
Dias antes, a presidente já havia ignorado o ultimato de Christine Lagarde, diretora-geral do Fundo Monetário Internacional. O FMI pede que a Argentina coloque em ordem até dezembro as estatísticas oficiais, descaradamente manipuladas pelo governo. As estimativas oficiais indicam uma inflação de 9% ao ano — ante os 25% calculados por institutos independentes.
A escalada inflacionária é um dos motivos que impedem Cristina de fazer o que nove entre dez argentinos apostam que acabará acontecendo: a desvalorização do peso. “O governo sabe que uma desvalorização reduziria o poder de compra da população”, diz Abel Viglione, economista da Fundação de Investigações Econômicas Latino-Americanas.
“E isso derrubaria ainda mais a popularidade de Cristina.” Na história econômica, a população de um país recorre à moeda de outro somente quando perde a confiança na sua própria. “Essa política de controle cambial foi tentada no passado e já provou que não dá certo”, diz Alberto Ramos, economista-chefe do banco Goldman Sachs para a América Latina. Em certo sentido, a história da Argentina parece sempre se repetir.
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