domingo, 14 de junho de 2015

Uma vaca profanada - Carlos Heitor Cony


RIO DE JANEIRO - Era uma vaca palustre e bela –não, não era bem isso, era simplesmente uma vaca como todas as vacas costumam ou devem ser: admito que nunca me preocupo com vacas, meu arroubo pastoral nunca foi além da fazenda de Itaipava, mais pelo sino de sua capela do que pela fazenda em si.

Agora, diante da vaca, a primeira lembrança que me veio foi desagradável. Visitava a Índia e aluguei um carro para conhecer cidades do interior. Numa delas, esbarrei com uma vaca no caminho, enorme e escura, que lambia vagarosamente o chão da estrada. A vaca era um animal sagrado naquelas paragens.

Fiquei sem saber como superar o problema e a vaca. Se buzinasse, ela podia se assustar e eu teria criado um caso. Não havia ninguém perto. Sair do carro e meter um pontapé na vaca seria perigoso, ela poderia revidar com uma chifrada. Mesmo assim, saí do carro e fiquei olhando o animal, até que ele se decidisse a ir embora.

De repente, apareceram uns mendigos de estrada, que ficaram estupefatos com a cena: uma vaca, um carro e um forasteiro. Para que não me levassem a mal, tive a péssima ideia de bajular a vaca. Aproximei-me de sua garupa, fazendo-lhe um afago. Os mendigos começaram a gritar, brandindo seus cajados.

Pouco a pouco surgiu mais gente, uma pequena multidão, cada vez mais encolerizada. Eu tinha razões para suspeitar de que era o objeto daquela cólera. Felizmente apareceu um guarda que me afastou da turba e me levou a uma autoridade.

Depois de alguma confusão –eu falava um péssimo francês e ali ninguém falava nenhuma língua ocidental– consegui entender o motivo da indignação: eu profanara a vaca com minha suja mão de ímpio, comedor de comidas proibidas, fornicador de mulheres impuras, enfim, eu fizera o equivalente a um selvagem que chega a Jerusalém e urina nas pedras do Muro das Lamentações.

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