segunda-feira, 15 de setembro de 2014

A enorme burrice de chamar de “delator” quem coopera com investigações na Justiça. Em países sérios, não se procura denegrir nem demonizar quem passa para o lado certo e ajuda a desvendar crimes e a colocar bandidos e ladrões na cadeia

Coluna do 

Ricardo Setti


Nenhum país sério usa termo depreciativo para designar quem coopera com a Polícia e a Justiça no desmantelamento de organizações criminosas. Já no Brasil... (Ilustração: partidoxlalibertad.com)
Nenhum país sério usa termo depreciativo e maldito para designar quem coopera com a Polícia e a Justiça no desmantelamento de organizações criminosas. Já no Brasil… (Ilustração: partidoxlalibertad.com)
O ex-diretor de Abastecimento e Refino da Petrobras está, como se sabe, fazendo chacoalhar as vigas mestras do governo com suas explosivas declarações sobre um enorme esquema de corrupção dentro da estatal fundado em propinas pagas por empreiteiros cujo resultado irrigava os bolsos de políticos da base de sustentação do lulopetismo.
O objetivo de Costa, naturalmente, é obter vantagens (LEGAIS!) perante a Justiça — no caso, tentar diminuir o tempo que passará na cadeia por ser o operador do esquema além de, eventualmente, conseguir que parentes –  como filhas e genros — sejam exonerados do processo a que ele responde. Mas ninguém duvida de que, com seu depoimento, do qual VEJA desta semana adianta importantes pontos, o ex-diretor está prestando um grande serviço ao país e aos bons costumes públicos.
E aí chegamos ao ponto deste post: cooperar com a Polícia, o Ministério Público e a Justiça para obter redução da pena — e fazer com que bandidos sanguinários chefes de quadrilhas, por exemplo, ou, como no caso, ladravazes de dinheiro público sigam para a penitenciária — recebeu, no Brasil, o pavoroso nome de “delação premiada”.
Não sei, não, se essa denominação não foi proposital, espalhada, nos primeiros anos em que o instituto começou a vigorar, com o objetivo de desmoralizá-lo. “Delação” é coisa feia, horrorosa. “Delator” — que é como TODO MUNDO está chamando Paulo Roberto Costa — é qualificativo enormemente depreciativo, é maldito, é razão generalizada, quase universal, de desprezo por quem assume esse papel.
É uma rematada burrice, na melhor das hipóteses, qualificar como “delator” criminosos que resolverm colaborar para que seja feita justiça. Esse qualificativo ATRAPALHA a Justiça, INIBE possíveis integrantes do crime organizado, por exemplo, que desejam mudar de lado e, em troca de penas mais leves, ajudem a desmantelar quadrilhas e colocar seus chefões atrás das grades.
Em outros países, os legisladores evitaram cuidadosamente tratar com esse qualificativo desmoralizante os colaboradores.
O principal exemplo foi a Itália, que aprovou legislação específica para fazer frente à brutal onda de terrorismo de extrema esquerda e de extrema direita desencadeado nos anos 70 — os chamados “Anos de Chumbo” — e que prosseguiria ainda por parte dos 80, até sua eliminação pelo Estado democrático.
Também no combate à Máfia e similares a República Italiana fez o mesmo, e para ambos os casos surgiu a figura dos pentiti, os “arrependidos” — pessoas que pertenceram a quadrilhas ou grupos terroristas e que, depois de presas, resolveram “arrepender-se” e colaborar com as investigações. O sistema legal os chama decollaboratori di Giustizia, ou seja, colaboradores da Justiça.
A Colômbia, país imerso em virtual guerra civil há mais de meio século — e cujas forças da ordem, felizmente, vêm esmagando aos poucos os narcoguerrilheiros das chamadas “Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia” (Farc) — seguiu pelo mesmo caminho, obtendo grande êxito e desencadeando operações extremamente bem sucedidas graças a ex-terroristas que mudaram de lado e passaram a municiar o governo com informações.
Lá, por lei, isso não é chamado de “delação”, mas de colaboración eficaz con la Justicia. O “eficaz ” é exigência presente não apenas na lei colombiana, mas em diversas legislações, por razões óbvias: a cooperação precisa dar resultados para que o preso obter benefícios legais.
Uma rara foto dos principais comandantes da narcoguerrilha das Farc: Alfonso Cano (de barba), foi morto em novembro de 2011 com o auxílio de réus colaboradores, o mesmo ocorrendo com "Mono Jojoy" (de boina), em setembro de 2010. No meio deles, o fundador das Farc, Manuel Marulanda, que teve morte natural em 2008 e foi sucedido por Cano (Foto: El Tiempo)
Uma rara foto dos principais comandantes da narcoguerrilha das Farc: Alfonso Cano (de barba), foi morto em novembro de 2011 com o auxílio de réus colaboradores, o mesmo ocorrendo com “Mono Jojoy” (de boina preta, em primeiro plano), em setembro de 2010. À direita, o fundador das Farc, Manuel Marulanda, que teve morte natural em 2008 e foi sucedido por Cano (Foto: El Tiempo)
No caso da Colômbia, ao lado de um serviço de inteligência militar elogiado pelos Estados Unidos, foi essencial a colaboração de ex-terroristas que mudaram de lado nas operações mais exitosas das Forças Armadas contra o terror das Farc — entre outras, a localização e morte, em seu superprotegido bunker na Amazônia colombiana, de um dos mais carismáticos e também mais sanguinários, corruptos e cruéis dirigentes terroristas, Victor Julio Suárez Rojas, o “Mono Jojoy”, em setembro de 2010, e o golpe duríssimo que foi a morte pelas Forças Armadas do líder supremo Alfonso Cano, pouco mais de um ano depois, em outra operação militar na selva. 
A burrice brasileira com a “delação” praticamente não existe em país algum que mantenha instituto semelhante. Até em países menos desenvolvidos como a Guatemala foi criada, por lei de 2006, a figura docolaborador eficaz.
Para não falar, é claro, nos Estados Unidos, onde os acordos entre criminosos e os promotores de Justiça são conhecidos em toda parte, graças, sobretudo, ao cinema e às séries de TV. O instituto da substantial assistance in the investigation or prosecution (ajuda substancial na investigação ou no processo) beneficia réus ou presos já condenados que cooperem com o governo — por meio do promotor — prestando informações sobre co-réus, cúmplices ou outras pessoas alvo da mesma investigação.
Curiosamente, no Brasil, o Código Penal, mãe de todas as leis criminais, não confere nenhuma denominação pejorativa a quem coopera com as investigações, como se pode ver no parágrafo único do artigo 159, que trata do crime de extorsão mediante sequestro:
“§ 4º - Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços.”
A Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999) tampouco menciona “delação” ou delator, utilizando expressão muito mais adequada ao referir-se, em seu capítulo II, a “reús colaboradores”.
O mesmo se dá com a Lei dos Crimes Hediondos (lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990), que prevê, no parágrafo único de seu artigo 8º, que“o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”.
E por aí vai. A legislação, por meio de seus principais diplomas legais que trataram do tema, NÃO denomina “delator” quem coopera, nem “delação premiada” a cooperação com a Justiça em troca de minorar a pena do réu.
Quem passou a usar a expressão horrenda, depreciativa e que NÃO ESTIMULA PESSOAS A MUDAREM PARA O LADO CERTO foram, portanto, juristas, advogados, autoridades da própria Polícia e, claro, como sempre ocorre, a imprensa.
Em poucas palavras, todos eles estão prestando um grande desserviço ao país e à causa da Justiça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário