segunda-feira, 15 de setembro de 2014

"Você é trouxa". Por Juliana Doretto

Na 'Visita' de hoje, Juliana enfrenta em São Paulo jovens de boa família e péssima educação

14/09/2014 09h52 - Atualizado em 14/09/2014 15h05


O bumbo da discórdia (Foto: Freeimages.com)

Domingo, 6h50. Da manhã. Eu dormia meu justo sono do fim de semana quando batidas de bumbo e outros mais me acordaram em sobressalto. Estava em São Paulo.
Olho pela janela: na praça, em frente ao meu prédio, um grupo de jovens, com gravatas afrouxadas, camisas desabotoadas e vestidos justos, é responsável pela balbúrdia.
Saíram de alguma festa de formatura e acharam por bem acordar os moradores da rua perto de sua grande universidade privada. Barulho ali é comum de madrugada, mas antes das 7 da manhã de um domingo pareceu-me um pouco demais.
Enfurecida, visto um roupão sobre o pijama e saio de casa, com chinelo de quarto e cara amassada. O porteiro me olha assustado. Atravesso a rua, e chamo a atenção, muito educadamente, dos jovens rebeldes sem causa. “Minha gente, não são nem sete da manhã. Eu trabalhei ontem, estou cansada...”
Eles estavam revoltados porque algum vizinho enfurecido como eu resolveu jogar ovos nos moços barulhentos. Acharam que tinha sido eu. Não, meus queridos: eu seria muito idiota se tivesse lançado ovos primeiro e conversado depois...
Tudo ia razoavelmente bem até que um dos fulanos pede, dentro de sua embriaguez matinal, para falar comigo: “Você quer mudar o sistema? Chama a polícia”. Ao que respondo: “Eu já cansei de chamar a polícia para conter a bagunça dessa universidade”.
(Parêntesis: há casos absurdos, em que os estudantes ocupam a rua -- uma via que dá acesso a um importante hospital --, e não deixam mais nenhum carro passar. Um PM já me disse que eles "não mexem com os estudantes, porque ali tem muito filho de juiz e advogado”)
Pois bem: estávamos na parte em que disse que já tinha tentado a polícia inúmeras vezes. E ele então me diz: “Você é trouxa”.
Sabe, caro leitor, paciência tem limite. Mas, em vez de falar “trouxa é você”, ainda me dispus a falar: “Trouxa é quem acha que o sistema não pode ser mudado”.
E a coisa esquentou. O menino quis dizer que ele podia fazer barulho, porque estudava “naquela faculdade grande ali, ó” e que fazia “pós- graduação”.
Quando respondi que tinha cursado uma universidade maior que a dele, e pública (o que pouca diferença fazia, porque ninguém é melhor que ninguém por ter estudado aqui ou ali, mas na hora foi o que saiu...), choveram vaias e gritos de “Vai casar, seu problema é falta de homem”.
Nenhum respeito pelo espaço público e pelo direito do outro. Zero bom senso. Arrogância. Machismo. E, convenhamos, certo anacronismo, porque “vai casar” foi um pouco demais.
Pela camiseta que alguns traziam por cima das camisas sociais, via-se que eles serão engenheiros civis. Que projetos farão esses profissionais? Pensarão nos danos que causarão quando arquitetarem um shopping center? Tratarão com respeito mulheres que forem suas colegas de trabalho? Tratarão com respeito os operários, que, ao contrário deles, não estudaram naquela universidade e não têm pós-graduação?
Pode-se pensar que eles ainda são crianças, imaturos, que com o tempo entenderão. Posso ser trouxa, mas acho que milagres não acontecem – pelo menos não assim. Acho que eles continuarão a achar que os outros – os que querem retidão, os que pedem consideração, os que acolhem o bom senso -- são os trouxas. E não eles mesmos. Mas, enfim, o que uma trouxa como eu pode saber, não é?

perfil Juliana Doretto - blog da Ruth (Foto: ÉPOCA)






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