O Estado de S.Paulo - 08/01
Passado o período das "festas", vivemos um típico retorno às rotinas de um necessário conformismo humano diante da "realidade" - trabalho, problemas, preocupações...
Há algo básico nesse processo: o fato de que até segunda ordem a maioria vive sem nenhum brilho ou representa um papel de destaque na vida social. A festa (como o esporte que é o seu lado mais oficioso) obriga a uma fabricação fora do "real" - não seria melhor gastar em segurança, saúde e escolas? Por isso, elas inventam objetos e lugares especiais, preferencialmente de cabeça pra baixo, sobretudo no caso dos sistemas muito bem marcados por uma séria consciência de lugar, como é o caso brasileiro.
Sem o famoso "bolo de aniversário" ao gosto do aniversariante e com seu nome nele gravado a chocolate, como era o meu caso, não pode haver o teatro que alguns chamam de "ritual". Objetos e comidas especiais levam ao uso de roupas e adereços que distinguem papéis e pessoas. Mesmo sem conhecer, sabemos quem é o aniversariante por sua roupa e sua posição na mesa. É ele e é dele o dever privilégio de apagar as velas do seu bolo, que será devidamente comido por todos os convidados.
Diz um velho axioma que todas as culturas replicam seus valores em suas manifestações, mesmo as mais humildes. São essas redundâncias que promovem as certezas, como dizia Edmund Leach; ou essas invariantes, no linguajar de Lévi-Strauss. Réplicas idênticas a si mesmas que vão do mais sério ao mais vulgar. Dou um exemplo: no Brasil, as festas têm que ter música; comemos misturando a comida. O detestável "bandejão" é uma invenção americana, na qual tudo é sempre individualizado. No uso das máscaras, desmascaramos a ilusão elitista de que somos alienados.
Seria preciso remarcar que o tema oculto das festas de aniversário, com as quais internalizamos a ideia de "idade" e de pertencimento a uma família (cuja obrigação é produzir a festa), tem tudo a ver com a comensalidade comunitária do canibalismo cristão? Nele, Cristo se une ao pão e ao vinho e os distribui dando a cada um, no ato de comer em conjunto, a mesma comida, a consciência precisa de seu pertencimento a ele e a toda a coletividade nele focada e por ele criada.
Comer a mesma comida é essencial para pertencer. No aniversário, somos obrigados a "comer" o bolo do Juquinha, o qual é um símbolo do próprio aniversariante, que, por sua vez, se delicia comendo com gosto o maior pedaço de si mesmo; depois de, como um velho Deus, soprar para apagar as velinhas que marcam as suas "primaveras". Eis o tema do comer, do devorar, do englobar e do assentar o outro dentro de si mesmo como um ato de comunhão ou um gesto de superioridade. Eis de volta o canibalismo fundacional que significa, entre muitas coisas, o dar-se em sacrifício a uma pessoa ou grupo - o extremo do altruísmo. Ou, como remarcou Freud, tomar consciência dos limites que nos tornam humanos. Morrer apaixonadamente por amor e matar heroicamente por amor. Fiquemos nessa paisagem.
As festas exigem locais e, no caso dos rituais de passagem de ano - de um tempo em que toda a humanidade aniversaria - a praia (mediadora entre a terra firme e fechada por propriedades e o mar aberto, líquido e sem fronteiras visíveis) e os fogos de artifício acentuam o orgasmo formidável, embora, é claro, fugaz. Eles são explosões benéficas que fazem parte do que imaginamos como "graça" ou "milagre". O morrer-nascendo ou o nascer-morrendo da consciência explosiva de alguma coisa como acontece quando escapamos de um perigo ou entramos num templo, juntam ou rejuntam esses polos que a rotina e o princípio da realidade distinguem de modo absoluto. No caso, o nascer como oposto do morrer, justo o que se pretende negar na passagem de um ano a outro porque o que se almeja é, obviamente, um belo futuro e não o fim do mundo. Marcamos 2013 sem deixar de querer que 2014 seja uma adição numa série infinita.
Os fogos de artifício enfatizam o fim sem negar o começo. As bombas se repetem para eliminar as distâncias entre o "ser", o "ter sido" e o "vai ser". Elas são ajudadas pelos fogos e, pela presença das celebridades que, cantando e dançando, brilham e trabalham para nós, dignificando vidas comuns.
Os famosos precisam de nós, tal como os deuses precisam de devotos. O que seria de um cantor sem um auditório? Os santos, as celebridades, os muito ricos e poderosos, abrem-se ao encontro e recebem de volta aquela vida trivial que também é deles, mas que a fama tem o papel de esconder. O grande feiticeiro sabe que não faz nada, exceto quando encontra o impotente sofredor que, com uma fé absurda, o procura em busca de cura.
Em toda festa, nos sujeitamos a uma contaminação ampliada pela eventual presença dos famosos. Nas comemorações, juntamos o velho com o novo, a vida com a morte, o superior com o inferior e com ajuda do nobre e mero álcool e dos "fogos de artifício" (fogos de mentira, porque os de verdade, matam); cortamos a água do grandioso rio do tempo que corre sem parar e não pode ser pisada duas vezes.
Passado o período das "festas", vivemos um típico retorno às rotinas de um necessário conformismo humano diante da "realidade" - trabalho, problemas, preocupações...
Há algo básico nesse processo: o fato de que até segunda ordem a maioria vive sem nenhum brilho ou representa um papel de destaque na vida social. A festa (como o esporte que é o seu lado mais oficioso) obriga a uma fabricação fora do "real" - não seria melhor gastar em segurança, saúde e escolas? Por isso, elas inventam objetos e lugares especiais, preferencialmente de cabeça pra baixo, sobretudo no caso dos sistemas muito bem marcados por uma séria consciência de lugar, como é o caso brasileiro.
Sem o famoso "bolo de aniversário" ao gosto do aniversariante e com seu nome nele gravado a chocolate, como era o meu caso, não pode haver o teatro que alguns chamam de "ritual". Objetos e comidas especiais levam ao uso de roupas e adereços que distinguem papéis e pessoas. Mesmo sem conhecer, sabemos quem é o aniversariante por sua roupa e sua posição na mesa. É ele e é dele o dever privilégio de apagar as velas do seu bolo, que será devidamente comido por todos os convidados.
Diz um velho axioma que todas as culturas replicam seus valores em suas manifestações, mesmo as mais humildes. São essas redundâncias que promovem as certezas, como dizia Edmund Leach; ou essas invariantes, no linguajar de Lévi-Strauss. Réplicas idênticas a si mesmas que vão do mais sério ao mais vulgar. Dou um exemplo: no Brasil, as festas têm que ter música; comemos misturando a comida. O detestável "bandejão" é uma invenção americana, na qual tudo é sempre individualizado. No uso das máscaras, desmascaramos a ilusão elitista de que somos alienados.
Seria preciso remarcar que o tema oculto das festas de aniversário, com as quais internalizamos a ideia de "idade" e de pertencimento a uma família (cuja obrigação é produzir a festa), tem tudo a ver com a comensalidade comunitária do canibalismo cristão? Nele, Cristo se une ao pão e ao vinho e os distribui dando a cada um, no ato de comer em conjunto, a mesma comida, a consciência precisa de seu pertencimento a ele e a toda a coletividade nele focada e por ele criada.
Comer a mesma comida é essencial para pertencer. No aniversário, somos obrigados a "comer" o bolo do Juquinha, o qual é um símbolo do próprio aniversariante, que, por sua vez, se delicia comendo com gosto o maior pedaço de si mesmo; depois de, como um velho Deus, soprar para apagar as velinhas que marcam as suas "primaveras". Eis o tema do comer, do devorar, do englobar e do assentar o outro dentro de si mesmo como um ato de comunhão ou um gesto de superioridade. Eis de volta o canibalismo fundacional que significa, entre muitas coisas, o dar-se em sacrifício a uma pessoa ou grupo - o extremo do altruísmo. Ou, como remarcou Freud, tomar consciência dos limites que nos tornam humanos. Morrer apaixonadamente por amor e matar heroicamente por amor. Fiquemos nessa paisagem.
As festas exigem locais e, no caso dos rituais de passagem de ano - de um tempo em que toda a humanidade aniversaria - a praia (mediadora entre a terra firme e fechada por propriedades e o mar aberto, líquido e sem fronteiras visíveis) e os fogos de artifício acentuam o orgasmo formidável, embora, é claro, fugaz. Eles são explosões benéficas que fazem parte do que imaginamos como "graça" ou "milagre". O morrer-nascendo ou o nascer-morrendo da consciência explosiva de alguma coisa como acontece quando escapamos de um perigo ou entramos num templo, juntam ou rejuntam esses polos que a rotina e o princípio da realidade distinguem de modo absoluto. No caso, o nascer como oposto do morrer, justo o que se pretende negar na passagem de um ano a outro porque o que se almeja é, obviamente, um belo futuro e não o fim do mundo. Marcamos 2013 sem deixar de querer que 2014 seja uma adição numa série infinita.
Os fogos de artifício enfatizam o fim sem negar o começo. As bombas se repetem para eliminar as distâncias entre o "ser", o "ter sido" e o "vai ser". Elas são ajudadas pelos fogos e, pela presença das celebridades que, cantando e dançando, brilham e trabalham para nós, dignificando vidas comuns.
Os famosos precisam de nós, tal como os deuses precisam de devotos. O que seria de um cantor sem um auditório? Os santos, as celebridades, os muito ricos e poderosos, abrem-se ao encontro e recebem de volta aquela vida trivial que também é deles, mas que a fama tem o papel de esconder. O grande feiticeiro sabe que não faz nada, exceto quando encontra o impotente sofredor que, com uma fé absurda, o procura em busca de cura.
Em toda festa, nos sujeitamos a uma contaminação ampliada pela eventual presença dos famosos. Nas comemorações, juntamos o velho com o novo, a vida com a morte, o superior com o inferior e com ajuda do nobre e mero álcool e dos "fogos de artifício" (fogos de mentira, porque os de verdade, matam); cortamos a água do grandioso rio do tempo que corre sem parar e não pode ser pisada duas vezes.
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