domingo, 26 de janeiro de 2014

AS FORMIGAS E O GIGANTE, por Mauro Pereira


Dia desses, premido por um súbito desarranjo intestinal, cedi à necessidade e me aventurei usar uma dessas privadas espalhadas pelas rodoviárias do mundo. “É um real”, vociferou o funcionário nada amistoso que fazia girar a roleta e tomava conta da caixa registradora.
De posse dos apetrechos necessários, entrei no cubículo que não passava de um metro de cada lado e, de imediato, tive o desprazer de me deparar com um quadro de imundície inenarrável e sentir entrar pelas narinas o mau-cheiro insuportável que contaminava o ambiente. Já derramando gotas gélidas do suor dos desesperados, me acomodei no vaso de cor indefinida que deixava a paisagem ainda mais medonha e procurei não pensar naquela situação insustentável. “Haverá de ser rápido e indolor”, divaguei, conformado.
Estava eu ali, absorto e com sinais visíveis de falta de ar, quando um aglomerado de formigas chamou minha atenção. Num vai-e-vem frenético, centenas delas caminhavam em fila indiana. Enquanto algumas, carregando algo parecido com papel se dirigiam da entrada do cubículo rumo à parede às minhas costas, outro agrupamento fazia o caminho inverso em marcha acelerada para chegar ao seu destino e retornar com uma nova carga daquele material que parecia lhes proporcionar uma felicidade imensurável.
Curioso por natureza, quis saber onde era o ponto de partida daquela caminhada incessante. Com todo cuidado pudico que a situação exigia, entreabri a porta e pude constatar que elas, sem exceção, vinham da caixa registradora. Incansáveis e bem organizadas não se preocupavam em mostrar o ponto de partida, mas com habilidade excepcional conseguiam camuflar a entrada do esconderijo para onde levavam o produto da pilhagem. O máximo que consegui ver é que era em algum orifício na parede. Nada mais.
Com a curiosidade ainda mais aguçada, resolvi, então, estudar o comportamento daquele exército de trabalhadoras ativas. Notei que eram da mesma espécie, pois dividiam irmanamente a feiura e os modos desajeitados, mas pude observar, também, que algumas delas se destacavam das demais. Havia uma cuja arrogância ostensiva indicava ser a manda-chuva inquestionável, pois todas lhe prestavam reverência e vassalagem explícitas. Embora tentasse dissimular, era nítido que tinha o caminhar trôpego. As mais íntimas se apressaram em justificar os passos cambaleantes da líder afirmando que era devido a falta de uma das pernas, a menorzinha, decepada que fora por uma máquina insensível e cruel. Já as fofoqueiras de plantão juravam que era o resultado de uma vida dedicada ao ócio e à bebedeira desenfreada. Entretanto, ambas concordavam que a chefe apedeuta nutria um rancor profundo por uma certa formiga intelectualizada, respeitada pelas mais famosas universidades do formigueiro que lhe impusera surras humilhantes em um passado não muito distante. Precavido, preferi tirar o meu da reta. Elas que são formigas que se entendam.
Logo em seguida, com ares de quem tinha adquirido recentemente o status de segunda-em-comando, aparecia uma outra com características bastante estranhas. Trajando um terninho vermelho que destacava o corpo avolumado, agarrava-se com sofreguidão a uma vassoura sem pelo que ganhara de presente de jornalistas lacaios. Eu ainda não consegui entender o que ela queria com a vassoura depelada. Fazer faxina?
Posando como a terceira na hierarquia, mas com planos inconfessáveis de assumir a liderança daquele formigueiro indecente no menor espaço de tempo, caminhava uma operária excepcional, com poderes extra-ordinários, pois tinha a capacidade singular de mudar de aparência e de nome. Quando vinha era uma, quando voltava era outra. Fantástica! Saltava aos olhos o respeito que lhe era devotado pelas companheiras ao desfilar garbosa com a sua espingarda de chumbinho descarregada atravessada no peito coberto por um tipo de pijama molambo muito comercializado lá pelas bandas do sul.
Para completar o quarteto notável sobressaia-se a mais idosa, facilmente identificada pelo semblante inconfundível. Embora visivelmente abatida pelos sintomas da degeneração intelectual irreversível, ostentava um bigode lustroso e bem cuidado que tentava dar uma certa aparência de seriedade ao rosto enrugado. Porém, subitamente a altivez manipulada cedeu lugar a um pavor indescritível depois de perguntar a uma companheira o que ela carregava. “Palmeira”, respondeu a outra, quem sabe para dar um pouco de dignidade ao papel firmemente preso. Talvez pela idade já avançada, a formiga de bigode lustroso deve ter entendido “palmério”. Desesperada entrou no primeiro buraco disponível e não mais a vi desde então.
A procissão era composta por outras personalidades menos importantes, mas cúmplices do mesmo propósito de chegar à máquina registradora, a qualquer preço! Tinha a que travava uma batalha inglória com a vara de pescar na busca inútil de descobrir onde era o seu início e qual era sua serventia. Incomodado com aquela demonstração de incompetência, decidi esmagá-la. Esse foi o meu erro. Tomada por uma fúria incontrolável, disse que havia sido promovida a cargo infinitamente mais importante no formigueiro e que não precisava mais daquela porcaria de ferramenta inútil. Aos berros a desbocada mandou eu esmagar a santa da minha mãezinha, acusou minha esposa de compartilhar com sua sogra os prazeres da vida mundana e desfiou um rosário de palavrões impublicáveis. Para dar apoio à amiga boca-suja, apareceram do nada mais duas comparsas de lutas. A primeira, de gestos gentis, mas nada confiáveis, trajava um modelito que parecia ter sido desenhado sob medida para o mordomo do Conde Drácula e a segunda , de tez morena e semblante fútil, vestia uma camiseta vermelha estampando uma foice e um martelo. Circundando o símbolo, a frase denunciando a opção ideológica: “nóis love tapioca”. Ambas ameaçadoras. Achei melhor deixá-las em paz.
Foi aí, então, que despertei daquele torpor e tive a oportunidade ímpar de ver escancarada na minha frente a mais perversa das realidades. Aqueles seres minúsculos e insignificantes haviam transformado o gigante eternamente deitado, em uma mera privada fedorenta medindo um por um.
Apavorado, implorei aos céus que não me permitisse voltar novamente àquele banheiro, pois se tornaria iminente o risco de encontrar as mesmas formigas tomando de assalto a mesma caixa registradora e o cubículo, além de mais imundo e infectado, com suas dimensões diminuídas para menos de meio metro. Desde então, diariamente elevo minhas mãos rezando a prece dos que ainda creem, me apegando à fé inabalável de que os deuses atenderão minhas súplicas.
Alegrei-me quando o gigante bocejou prenunciando a chegada do tempo do ajuste de votos. Está por um triz o dia do Brasil acordar, no mínimo, menos infeliz!
Gigante adormecido...
Gigante adormecido…

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