segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Cartas de Londres: O velhinho e o cachorrão, por Beatriz Portugal


Hoje é o Dia do Armistício, data que marca o término da Primeira Guerra Mundial e um dia em que o país homenageia os mortos em combate.
Desde o final de outubro, vê-se uma flor de papel na lapela dos britânicos: a papoula vermelha. Não há mais veteranos daquela guerra – o último morreu no ano passado aos 110 anos – mas as papoulas sobrevivem. São um lembrete visual dos que se foram e usadas como gesto de apoio aos veteranos, já que o dinheiro arrecadado com sua venda é doado a ex-militares e suas famílias.
Quando chega esse dia eu sempre penso em um senhor que era meu vizinho no primeiro bairro em que morei em Londres. Todo dia eu via o senhor passear no parque com um pastor alemão.
O velhinho andava lentamente apoiado em duas bengalas. O cachorrão o acompanhava, também mancando. Dava dois passos e parava até o homem o alcançar, mais dois passos e parava, sempre assim.
Adorava ver a dupla passar. E não só eu. O velhinho e o cachorrão eram figuras queridas. Sempre os cumprimentavam, inclusive motoristas de ônibus que ao passar tocavam a buzina. O velhinho retribuía levantando uma das bengalas.


Depois de muito admirá-los pela janela, descobri que o cachorrão na verdade se tratava de uma cadela e que o velhinho era o Sr. Len Thorpe, ex-cantor de ópera e piloto da Força Aérea inglesa durante a Segunda Guerra, e que era mais provável ele convidar os conhecidos para um uísque do que um chá.
Ele foi membro do primeiro grupo da Força Aérea inglesa baseado em solo alemão e completou mais de 100 operações, tendo participado de muitas missões na Alemanha e territórios ocupados, incluindo ataques a alvos em Hamburgo, Berlim e Colônia. Foi agraciado com a Distinguished Flying Cross, condecoração concedida a oficiais por “atos de bravura, coragem e devoção”.
Uma manhã, ao olhar pela janela, vi o Sr. Thorpe passar sozinho. Não tive dúvidas do que aquilo significava. Desci para falar com ele que contou que a cadela, então com 13 anos, desmaiara durante um dos passeios e não resistira.
O Sr. Thorpe disse que tinha se acostumado a viver e conversar com ela todo dia, mas que precisava seguir em frente. Ao falar isso, os olhos dele se encheram de lágrimas. E os meus também. Fiquei sem palavras e acabei sendo consolada por quem queria consolar.
Depois disso, o Sr. Thorpe continuou seus passeios sozinho, mas logo adotou uma cadeira de rodas elétrica, o que lhe permitiu explorar mais do parque. Uma vez o encontrei no topo do morro, olhando a vista. Estava com um radinho de pilha colado ao ouvido, ouvindo ópera.
Eu sempre penso no Sr. Thorpe nesse dia em que o Reino Unido homenageia seus veteranos. Torço para que ele continue subindo e descendo as colinas do parque com seu radinho e que quem sabe um dia, passeando por lá, eu o encontre novamente e ele me convide para tomar um uísque.

Beatriz Portugal é jornalista. Depois de viver em Brasília, São Paulo e Washington, fez um mestrado em literatura na Universidade de Londres e resolveu ficar.

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