sexta-feira, 31 de maio de 2013

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA Inveja que não mata, aleija


CARLOS VIEIRA
Uma noite de inverno, fria, seca, profundamente seca, com uma umidade baixíssima. O teatro repleto, numa daquelas noites que a expectativa era uma viagem ao sublime, ao supremo sentimento que a música erudita induz. O público, antes do começo, ouvia o preludiar dos instrumentos. Como qualquer aquecimento antes do exercício, os músicos preludiam, tocam fragmentos de escalas, arpégios, acordes, e frases musicais que atingem os vários registros dos seus instrumentos. Confesso que sinto uma afinidade pelos registros de notas graves, de tonalidade escura, depressiva e às vezes melancólica. Aliás, ser um pouco depressivo é um estado de alma que favorece a meditação, a contemplação, ao contrário de pessoas alegrinhas, hipomaníacas, gente de ação que acham o pensar uma bobice. 
O programa tinha uma peça, talvez, uma das mais lindas de W. A. Mozart – o Concerto para Clarinete K622, na tonalidade de Lá Maior, composto em 7 de outubro de 1791 quando o gênio tinha 35 anos. Nessa peça, alegre, aberta, de uma delicadeza tímbrica há um Adágio, um adágio que ficou para sempre: a expressão lírica, doce, amável e terna. Certa vez, Einstein disse que, após o apaixonado Karl Maria von Weber (outro compositor que tinha uma afinidade enorme com o clarinete, com vários concertos e um quinteto para o mesmo instrumento), Mozart foi e é a grandeza da simplicidade e do virtuosismo. 
Feito esse intróito quero falar da tragédia da inveja, esse sentimento que uma pessoa tem por uma qualidade de outra, que não é sua, mas que o faz desejar e sofrer por lhe faltar. Friso nesse escrito, não a inveja que ataca a outra pessoa, que denigre alguém que tem o que não se tem; escrevo sobre uma inveja que não mata, aleija. 
Ele, o segundo violino da orquestra, vivia num desconforto pelo fato de não se conceber primeiro violino, e com isso desenvolveu uma série de sintomas físicos e psíquicos. Nos concertos, como sabia sua partitura praticamente decorada, vivia o olhar seu parceiro, ali a seu lado e desejar seu lugar. Diga-se de passagem, o primeiro violinista de uma orquestra é, depois do maestro, a pessoa mais importante, inclusive aquele que pode, eventualmente substituir o regente e que antes do concerto, afina os músicos. 
Sofrimento, dor de raiz como dizia Vinicius de Moraes, sua inveja tomou proporções trágicas: começou a sentir tremores nas mãos e sensação de vertigem e dores precordiais antes e durante os concertos. A inveja quando não aponta sua ferina flecha em direção ao invejado, volta-se para aquele que inveja. A pessoa sente que não tem valor, apresenta um glissando decrescivo que a cada dia baixa mais a autoestima. 
Meu personagem chegou a pedir uma licença médica e iniciou, por indicação de um amigo, uma ajuda psicoterápica. 
A vida, na sua natureza transitória e finita mostra, às vezes, a ópera trágica da mortalidade! O primeiro violinista morre num acidente de trânsito! 
Ele, meu personagem soube e foi incapaz de comparecer ao velório. Sentiu-se culpado e perseguido por possíveis olhares persecutórios em sua direção. Na verdade, era ele que se acusava e se perseguia, talvez por fantasias mortíferas. Fantasias inconscientes conscientes de quem, por inveja, quer o lugar do outro e é capaz de pensar: “se ele morresse... que besteira, para com essas ideias pecaminosas. Deus me livre se isso acontecesse”. E aconteceu! A culpa de Tácito, afinal dei nome ao personagem, levou-o a uma depressão profunda a ponto de pedir mais licença, termina por abandonar a orquestra. “Jamais me recuperarei, bendita zelotipia, nome esquisito para esse mal que seca a gente, que deixa a pessoa sem valor algum, e mais, com um remorso interminável. Jamais me perdoarei, ou a forma de pagar é...” 
A inveja, o sentimento invejoso, esse “mau de raiz” secou a alma de Tácito, agora associei com a palavra tácito e fui ao dicionário de sinônimos e antônimos de Housaiss, lá está escrito: Taciturnidade – melancolia, depressão, misantropia, tristeza. 
O que Tácito e as pessoas não se dão conta é que uma alternativa para o sentimento invejoso é a possibilidade de extrair e desenvolver dentro de si – a Admiração. No ato de admirar uma qualidade alheia, a pessoa se sente bem, pode até usufruir do que o outro tem e, quem sabe conquiste o objeto da inveja. 
Termino lembrando de Manuel Bandeira, em sua Seleta de Prosa “Sorriso Suspenso, Cecília Meireles: Viagem” - “...Creio que Machado de Assis sorriria satisfeito a esta emoção que guarda um tão nobre tom de reserva ainda na extrema amargura. Veja-se, por exemplo, este ‘Retrato’”. 
Eu não tinha este rosto de hoje, 
Assim calmo, assim triste, assim magro. 
Nem estes olhos tão vazios, 
Nem o lábio amargo. 
Eu não tinha estas mãos sem força, 
Tão paradas e frias e mortas; 
Eu não tinha este coração 
Que nem se mostra. 
Eu não dei por esta mudança, 
Tão simples, tão certa, tão fácil: 
- Em que espelho ficou perdida 
A minha face?
As mãos de Tácito nunca mais tocaram em seu violino. E o violino espera uma admiração que jamais surgiu!
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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