sábado, 11 de maio de 2013

Adultério ideológico



Ruy Fabiano
Mais esdrúxula que a adesão de um liberal histórico a um governo que se proclama de esquerda – caso da nomeação de Guilherme Afif Domingos a ministro-chefe da Secretaria da Micro e Pequena Empresa -, é a acumulação de cargos daí decorrente.
Afif, que é do PSD, é também vice-governador de São Paulo, cargo que, num gesto surpreendente, se recusou a deixar ao ser nomeado ministro. Baseia-se num suposto vazio legal quanto à matéria, o que lhe autorizaria a acumulação.
Ainda que assim fosse – há controvérsias -, não há como deixar de considerar alguns fatores, de ordem ética e política, que resultam dessa insólita acumulação de funções.
Do ponto de vista ético (que tem também implicações políticas), quebra-se o princípio bíblico do “não se pode servir a dois senhores”. Afif servirá simultaneamente à presidente Dilma, que é do PT, e ao governador Geraldo Alckmin, que é do PSDB.
Se conseguir levar essa acrobacia até o fim, terá logrado, de quebra, outra façanha, de ordem metafísica: provar o equívoco de uma sentença bíblica. Não é tarefa fácil.
Dentro de um ano, terá início a campanha sucessória, e ambos os “senhores” de Afif – Dilma e Alckmin – serão candidatos à reeleição, sem qualquer chance de aliança: o candidato de Dilma em São Paulo enfrentará Alckmin e este apoiará o tucano (Aécio Neves?) que enfrentará Dilma.
Não se sabe como procederá o ministro-vice-governador Afif, pois, enquanto estiver ministro, terá de ser braço político de Dilma junto aos pequenos empresários, para que estes votem e se engajem na sua reeleição – ou alguém imagina que a presidente criou mais uma pasta (a 39ª!) por razões de ordem técnica?
Criou-a porque sabe que esse segmento é amplo e influente e pode lhe gerar votos, muitos votos. Afif não foi nomeado por ser o especialista que é na matéria. Poderia até não ser.
Afinal, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), ao assumir o cargo de ministro da Pesca, confessou não saber nem pendurar uma minhoca no anzol. “O cargo é político”, disse ele.
De fato, assim têm sido as nomeações, que contemplam partidos da base - ou, como no caso do PSD, partidos que, em decorrência da nomeação, passam formalmente a integrá-la.
Como ministro de Dilma, Afif terá que se engajar no esforço eleitoral que, desde já, move a base governista. Ao mesmo tempo, é vice de um tucano, a quem deve lealdade (pelo menos em tese), e que trabalhará em sentido oposto ao de sua chefe federal.
Esses são os imbróglios ético-políticos, que não costumam ser obstáculo nos dias de hoje a muita coisa (afinal José Genoíno e João Paulo Cunha, condenados pelo STF, votaram há dias na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados a admissibilidade de uma emenda constitucional que tira poderes da Corte que os condenou em instância final).
Mas Afif terá que enfrentar ainda questionamentos judiciais. O vazio legal que, segundo seu entendimento, o beneficia, está sendo contestado por um deputado estadual, Carlos Giannazi (PSol), que pede sua cassação do cargo.
A Constituição do Estado de São Paulo, ao estabelecer direitos e deveres do governador, o impede de acumular cargos. Mas nada diz quanto ao vice.
Ora, se o vice é o sucessor legal e imediato do governador, não é preciso ser nenhum jurisconsulto para entender que, assim como os votos que elegeram o titular se estenderam ao vice, ambos estão submetidos ao mesmo código de conduta expresso na constituição estadual.
Se Alckmin adoecer ou tiver que viajar ao exterior, Afif pedirá licença a Dilma para assumir o governo de São Paulo? À margem de tudo isso (que não é pouco), um constrangedor paradoxo: um liberal, que em princípio defende o Estado mínimo, empenhado em manter-se duplamente a ele apegado. É o que se pode chamar de um adultério ideológico completo.

Ruy Fabiano é jornalista.

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