CARLOS VIEIRA
Paulo é médico, formado no século passado, lá pelos idos de 1968. Oriundo de uma Faculdade, praticamente filha da Escola Baiana de Medicina. Aliás, naquela época os centros de referências de formação de médicos eram a própria Escola Baiana de Medicina, a Academia Nacional de Medicina no Rio de Janeiro e o Hospital das Clínicas de São Paulo.
Paulo foi formado ainda no tempo em que a “a clínica era soberana” e a “relação médico paciente” não era exatamente uma disciplina do curso médico, mas uma atitude ética e importante na formação. Aprendia-se que, antes de qualquer coisa a ser examinada, examinasse a “pessoa” do paciente, e não um objeto frio de investigação.
O exame era clínico e psicológico: conversar com a pessoa, saber da história dos seus sintomas, investigar suas correlações psicossomáticas, ouvir, apalpar o corpo do paciente, escutar seus sons e tons, sua pele, o movimento dos seus órgãos, pegar o pulso, aferir a pressão arterial, tudo enfim, antes de partir para exames complementares como forma de encobrir inseguranças. O “olho clínico” do médico era um instrumento da sua intuição e experiência clínicas.
Paulo, meu amigo, conta-me a seguinte história:
Há dias que sentia zumbidos e momentos de leve tontura. Sua audição, principalmente a do lado esquerdo, notava que estava reduzida. Levantava-se,
às vezes, como se uma crise de labirintite se instaurasse para ficar. Preocupado, claro, marcou uma consulta com um Otorrino. Não se anunciou como colega, como médico. Entrou, foi recebido, sentou e falou dos seus sintomas. O colega ouviu, pensou que seria interessante usar algo para desfazer a cera, e logo disse: “usa esse remédios por uma semana, mas, antes, vou pedir uma ressonância magnética para maiores esclarecimentos. Você volta, traz o resultado do exame, e fecharemos o diagnóstico.”
Nesse momento, Paulo, contrariado, diz: “Dr., eu sou médico também, seu colega. Pensei que o senhor examinaria os meus ouvidos com o otoscópio. Tudo bem, muito obrigado pela atenção. Procurarei outro colega que, antes de tudo, possa conversar comigo e examinar meus ouvidos antes de apelar para qualquer exame de imagem. Passe bem, e muito obrigado”.
Dias depois, ao ter que fazer uma viagem à sua cidade natal, Paulo aproveitou e marcou uma consulta com um velho amigo, colega e contemporâneo de Faculdade. O colega quis ouvir a história dos zumbidos e da tontura, tirou seu pulso e pressão arterial, examinou seus ouvidos, conversou sobre seus hábitos, enfim, estabeleceu uma relação humana. Consequência: ambos estavam entupidos de cera, principalmente o ouvido esquerdo!
Essa história parece ser banal, corriqueira, mas reflete um recorte na medicina atual. Vivemos uma realidade na prática médica, da exuberância dos exames complementares! Muitos dos nossos médicos, hoje em dia, não saem da faculdade com uma formação básica clínica. As faculdades parecem se preocupar por formar “técnicos em medicina” e não médicos, tanto do corpo quanto da alma. É óbvio que exames são importantes, mas são exames complementares, ou seja, auxiliam a clínica, a intuição e experiência clínica dos colegas.
Por consequência, estamos assistindo, e essa história é um modelo atual, a uma medicina que não se preocupa com a pessoa do paciente; com uma medicina, talvez, a serviço de uma super especialização que por sua vez agrada aos interesses econômicos tanto dos médicos, como dos empresários da medicina, a despeito de uma atenção primária – a relação médico paciente com sua importância de investigação mais profunda, do ponto de vista clinico psicossomático.
Em entrevista dada à revista Carta Capital, de 9 de janeiro de 2013, o Dr. José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, salientou que: “O País passa por um processo de ‘americanização’ de seu sistema de saúde, com a perda de controle dos gastos causada pela hiper especialização médica, pela pressão da indústria para o custeio de tecnologias de eficácia duvidosa e a falta de regulamentação do mercado privado.” Mais adiante diz Temporão: “Há um consenso entre os especialistas de que não é possível ter um sistema de saúde universal, equitativo e sustentável sem uma grande base de atenção primária. A classe média imagina que um sistema bom é aquele no qual ela pode escolher seus especialistas por conta própria. O cidadão sente uma palpitação e procura um cardiologista, sem antes passar por um clínico geral. Só que talvez o problema não seja cardíaco, então o paciente transita entre vários especialistas até acertar o diagnóstico, com um custo elevadíssimo para o sistema.”
Lembro agora quando fazia meu curso de Medicina na Universidade Federal de Alagoas, meu professor de parasitologia sempre enfatizava: diante de um desconforto gastrointestinal, antes de qualquer exame mais sofisticado, peçam um simples exame e cultura de fezes e urina. O que pode ser sintoma de úlcera, às vezes é uma simples verminose!
É necessário mais incentivo e ação governamental para criarem mais facilidades para o exercício de Clínicos Generalistas.
Ainda citando a entrevista do Ministro Temporão: “Os clínicos gerais funcionam como uma espécie de filtro antes de o paciente ser encaminhado aos níveis mais especializados. No Brasil, é comum um paciente não saber qual é o seu médico... as faculdades não formam médicos preparados para essa visão. Há uma especialização precoce. No Canadá, as bolsas e vagas para residência médica são definidas pelo governo. Em 2012, a grande maioria das vagas disponíveis era para clínicos gerais.”
Caro leitor, deixo aqui as minhas esperanças para que uma boa parte dos colegas médicos, lembrando os conselhos do mestre Hipócrates, vejam mais os seus pacientes. Ouçam, dediquem um pouco do seu tempo para examiná-los, para conversar e exercitar os preceitos da clínica médica básica. Os exames complementares são complementos à arte da medicina, e não artefatos técnicos e sedutores para encobrir as deficiências de formação.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.
Paulo foi formado ainda no tempo em que a “a clínica era soberana” e a “relação médico paciente” não era exatamente uma disciplina do curso médico, mas uma atitude ética e importante na formação. Aprendia-se que, antes de qualquer coisa a ser examinada, examinasse a “pessoa” do paciente, e não um objeto frio de investigação.
O exame era clínico e psicológico: conversar com a pessoa, saber da história dos seus sintomas, investigar suas correlações psicossomáticas, ouvir, apalpar o corpo do paciente, escutar seus sons e tons, sua pele, o movimento dos seus órgãos, pegar o pulso, aferir a pressão arterial, tudo enfim, antes de partir para exames complementares como forma de encobrir inseguranças. O “olho clínico” do médico era um instrumento da sua intuição e experiência clínicas.
Paulo, meu amigo, conta-me a seguinte história:
Há dias que sentia zumbidos e momentos de leve tontura. Sua audição, principalmente a do lado esquerdo, notava que estava reduzida. Levantava-se,
às vezes, como se uma crise de labirintite se instaurasse para ficar. Preocupado, claro, marcou uma consulta com um Otorrino. Não se anunciou como colega, como médico. Entrou, foi recebido, sentou e falou dos seus sintomas. O colega ouviu, pensou que seria interessante usar algo para desfazer a cera, e logo disse: “usa esse remédios por uma semana, mas, antes, vou pedir uma ressonância magnética para maiores esclarecimentos. Você volta, traz o resultado do exame, e fecharemos o diagnóstico.”
Nesse momento, Paulo, contrariado, diz: “Dr., eu sou médico também, seu colega. Pensei que o senhor examinaria os meus ouvidos com o otoscópio. Tudo bem, muito obrigado pela atenção. Procurarei outro colega que, antes de tudo, possa conversar comigo e examinar meus ouvidos antes de apelar para qualquer exame de imagem. Passe bem, e muito obrigado”.
Dias depois, ao ter que fazer uma viagem à sua cidade natal, Paulo aproveitou e marcou uma consulta com um velho amigo, colega e contemporâneo de Faculdade. O colega quis ouvir a história dos zumbidos e da tontura, tirou seu pulso e pressão arterial, examinou seus ouvidos, conversou sobre seus hábitos, enfim, estabeleceu uma relação humana. Consequência: ambos estavam entupidos de cera, principalmente o ouvido esquerdo!
Essa história parece ser banal, corriqueira, mas reflete um recorte na medicina atual. Vivemos uma realidade na prática médica, da exuberância dos exames complementares! Muitos dos nossos médicos, hoje em dia, não saem da faculdade com uma formação básica clínica. As faculdades parecem se preocupar por formar “técnicos em medicina” e não médicos, tanto do corpo quanto da alma. É óbvio que exames são importantes, mas são exames complementares, ou seja, auxiliam a clínica, a intuição e experiência clínica dos colegas.
Por consequência, estamos assistindo, e essa história é um modelo atual, a uma medicina que não se preocupa com a pessoa do paciente; com uma medicina, talvez, a serviço de uma super especialização que por sua vez agrada aos interesses econômicos tanto dos médicos, como dos empresários da medicina, a despeito de uma atenção primária – a relação médico paciente com sua importância de investigação mais profunda, do ponto de vista clinico psicossomático.
Em entrevista dada à revista Carta Capital, de 9 de janeiro de 2013, o Dr. José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, salientou que: “O País passa por um processo de ‘americanização’ de seu sistema de saúde, com a perda de controle dos gastos causada pela hiper especialização médica, pela pressão da indústria para o custeio de tecnologias de eficácia duvidosa e a falta de regulamentação do mercado privado.” Mais adiante diz Temporão: “Há um consenso entre os especialistas de que não é possível ter um sistema de saúde universal, equitativo e sustentável sem uma grande base de atenção primária. A classe média imagina que um sistema bom é aquele no qual ela pode escolher seus especialistas por conta própria. O cidadão sente uma palpitação e procura um cardiologista, sem antes passar por um clínico geral. Só que talvez o problema não seja cardíaco, então o paciente transita entre vários especialistas até acertar o diagnóstico, com um custo elevadíssimo para o sistema.”
Lembro agora quando fazia meu curso de Medicina na Universidade Federal de Alagoas, meu professor de parasitologia sempre enfatizava: diante de um desconforto gastrointestinal, antes de qualquer exame mais sofisticado, peçam um simples exame e cultura de fezes e urina. O que pode ser sintoma de úlcera, às vezes é uma simples verminose!
É necessário mais incentivo e ação governamental para criarem mais facilidades para o exercício de Clínicos Generalistas.
Ainda citando a entrevista do Ministro Temporão: “Os clínicos gerais funcionam como uma espécie de filtro antes de o paciente ser encaminhado aos níveis mais especializados. No Brasil, é comum um paciente não saber qual é o seu médico... as faculdades não formam médicos preparados para essa visão. Há uma especialização precoce. No Canadá, as bolsas e vagas para residência médica são definidas pelo governo. Em 2012, a grande maioria das vagas disponíveis era para clínicos gerais.”
Caro leitor, deixo aqui as minhas esperanças para que uma boa parte dos colegas médicos, lembrando os conselhos do mestre Hipócrates, vejam mais os seus pacientes. Ouçam, dediquem um pouco do seu tempo para examiná-los, para conversar e exercitar os preceitos da clínica médica básica. Os exames complementares são complementos à arte da medicina, e não artefatos técnicos e sedutores para encobrir as deficiências de formação.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.
Nenhum comentário:
Postar um comentário