quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

POEMA DA NOITE Terra Seca (trechos) - Paulo Fichtner


r Pedro Lago - 
4.12.2012
 | 23h30m

Um pássaro cujo peito amarelo faz com suas asas azuis 
O contraste mais belo, no dia ainda sem luz, batendo na vidraça, 
Levemente acordou-me: a noite bebera-me longamente 
E estava adormecido; pela janela úmida, a fulva fumaça 
Escorria; triste amanhecer esquecido, o que houve contigo?
Onde estás, manhã do meu dia?
Não vejo o povo nas ruas; 
Os ônibus seguem o seu percurso absolutamente vazios; 
As rádios não dão seus diários boletins matinais. 
Não veio o jornaleiro, 
Nem o leiteiro, 
Nem o jardineiro, 
Para podar os jardins extraordinários que nossa casa possui 
E tantas outras coisas que não precisamos mais...
Chegou o dia negro! Este é o dia em que a noite permanecerá noite! 
Muito bem, preparemos a mesa: o jantar hoje será à luz de velas! 
E depois poderemos ir aos jardins queimar os fogos, 
Que na escuridão da noite brilharão com mais intensidade... 
Convide seus amigos, disse-me ela, está é a hora da Verdade!
Nessa vala fétida; nesse charco de sangue que meus olhos encharcaram, 
Nessa poça de odor putrefato, levado pelo vento, sentada a uma das margens, 
As mãos nos joelhos, a cabeça entre as mãos, cantarolava Bela a louca:
Aqui os mortos deixam seus ossos! 
E os ratos vêm para roê-los, 
Até que no meio dos destroços 
Sobrem apenas as unhas e os cabelos!
A terra em ruínas: o deserto de pedra alastra-se pelo campo verdejante, 
E no leito dos rios os rios não dormem mais como dormiam antes, 
Não descem mais das colinas...vem, Bela, que diante de tanto terrorismo, 
O Vale da Morte será o abismo onde faremos nossa cama.
Bela, o Vale da Morte será para nós um lindo vale, 
Com os anjos na entrada tocando harpas douradas, 
E a imensidão verde se descortinando para meus olhos castanhos; 
Havia pérolas em meus olhos? 
Lembro de ter pensado que seriam tão pesadas tuas asas, 
Para ti, que tens esse corpo tão magro e delicado, 
Tão presente e, ao mesmo tempo, tão difícil de ser tocado; 
Ah, como ousaria continuar?
Se ousasse seria eu um mar de revoltosas vagas 
No revoltoso mar do teu cérebro.
E não estaria agora sozinho nesse quarto escuro, 
Deitado sobre esse catre imundo, 
Contando os ratos que passam por mim;
Estaria agora esfregando-me na terra cinzenta, 
Sentindo o perfume das fragrâncias que exalas, 
Mais doce que o cheiro exalado das valas 
Onde às vezes, a chorar, tu sentas...

Paulo Fichtner nasceu em Porto Alegre em 1971. Formado em História e Civilização Francesa pela Sorbonne. Começou a escrever aos 14 anos de idade, com a obraCemitério. Publicou O Despertar do Paraíso (1999), Tumulto Secreto (2005), Contra o Chão e o Vento(2007) e Como quem parte (2008). 

Nenhum comentário:

Postar um comentário