Provocado pelos governos de quatro Estados (RS, GO, MT e MS), o STF decidiu, no dia 24 de fevereiro de 2010, que o artigo 2º da Lei Complementar 62/89 é inconstitucional. Esse artigo fixa os critérios para o rateio do FPE, o Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal. É por meio do FPE que a União reparte com os governos estaduais uma fatia do que arrecada com o Imposto de Renda e o IPI. Preocupados em não secar as caixas dos Estados do dia para a noite, os ministros do Supremo, em decisão unânime, deram ao Congresso um prazo para aprovar uma nova regra: 31 de dezembro de 2012.
Decorridos dois anos e dez meses, o Legislativo não cumpriu a ordem judicial. Deputados e senadores foram ao recesso sem acomodar regras novas no lugar das normas condenadas. Com isso, criou-se um vácuo legal que sujeita os Estados ao risco de deixar de receber em 2013 as verbas do FPE. Coisa de R$ 50 bilhões. É uma cifra quase dez vezes maior do que os valores envolvidos na polêmica sobre a repartição dos royalties do petróleo.
Virou moda entre os congressistas reclamar da intromissão do STF nos assuntos da da política. Na semana passada, o Supremo estava posto em sossego quando o deputado Alessandro Molon (PT-RJ) decidiu provocá-lo para brecar a votação do veto de Dilma Rousseff à Lei dos Royalties. Submetido à petição do parlamentar, o ministro Luiz Fux decidiu que o veto petrolífero deveria entrar na fila. Antes de analisá-lo, os congressistas teriam de votar todos os vetos antecedentes.
Verificou-se que havia nas gavetas do Congresso outros 3.059 vetos. Os mais velhos vinham do governo FHC. Aguardavam por uma deliberação havia 12 anos. Um vexame. Sobretudo se considerado o fato de que a Constituição obriga o Congresso a deliberar sobre os vetos num prazo máximo de 30 dias. Ao inacreditável somou-se a impensável tentativa de simular, em poucas horas, a pseudovotação de uma cédula de 463 folhas com todo o passivo de vetos acumulados em mais de uma década.
No caso do FPE, a vergonha é ainda maior. Criado pelo Congresso Constituinte, o fundo foi inserido no artigo 159 da Constituição de 1988 com o nobre propósito de promover o equilíbrio entre as unidades da federação. No artigo 39 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, anotou-se que o Legislativo aprovaria num prazo de um ano lei definindo as fontes de financiamento do fundo.
Pois bem. No ano seguinte, 1989, aprovou-se a tal Lei Complementar 62. O problema é que os critérios para o rateio do dinheiro nasceram de um consenso precário. Levaram-se em conta a estrutura demográfica e a realidade socioeconômica da época. E decidiu-se que 85% do FPE seriam direcionados aos Estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O restantes 15% iriam para os do Sul e do Sudeste.
Como haveria um censo do IBGE em 1990, escreveu-se na lei que a metodologia valeria apenas até 1991, quando o Congresso votaria novas normas. Já lá se vão 20 anos. E nada. Foi por essa razão que, sentindo-se prejudicados, Rio Grande do Sul, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul bateram às portas do STF. Relator das ações, o ministro Gilmar Mendes concluiu que a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei Complementar 62/89 foi produzida por “omissão legislativa”. Seu voto foi seguido pela unanimidade dos colegas.
Ao descumprir o prazo fixado pelo Supremo para o preenchimento da lacuna, o Congresso tornou-se um omisso reincidente. E não foi por falta de matéria prima. A pedido do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), uma comissão de especialistas coordenada por Nelson Jobim, ex-constituinte de 88 e ex-presidente do STF, sugeriu uma saída para a encrenca, inserindo-a num pacote de reformas do chamado pacto federativo.
O embrulho continha três propostas de emendas constitucionais, um projeto de lei ordinária, um projeto de resolução do Senado e quatro projetos de lei complementar –entre as propostas, uma que desatava o nó do FPE. Tomadas no seu conjunto, os projetos previam um cruzamento de compensações. Nessa fórmula, seriam assegurados aos Estados a receita do FPE de 2012. O que passasse desse valor seria rateado sob novos parâmetros. A transição seria suave. Estados que perdessem dinheiro no FPE seriam compensados com outras fontes de receita.
Repassado a Sarney numa cerimônia com pompa, o pacote dos especialistas perdeu-se nas circunstâncias. Deu em nada. O senador Walter Pinheiro (BA), líder do PT, foi designado relator do pedaço da reforma que tratava especificamente do FPE. Ajusta daqui, reajusta dali levou à mesa uma proposta. Em essência, aproveitou o trabalho da comissão e fixou regras que valeriam até 2015. Ou seja: os congressistas ganhariam tempo.
No gogó, vários líderes puseram-se de acordo com os termos da proposta de Pinheiro. Na prática, o projeto estacou. A duas semanas do início do recesso, passou-se a considerar a hipótese de Sarney pedir formalmente ao STF uma dilatação do prazo que vence em 31 de dezembro. As férias chegaram e a solicitação não foi feita.
Do nada, surgiu um parecer de assessores técnicos do Senado. A peça sustenta a tese de que, mesmo sem uma nova lei, os critérios do FPE continuariam valendo para 2013. “Além desse parecer, há uma posição do TCU a respeito”, diz o líder do PSDB, senador Alvaro Dias (PR). Walter Pinheiro, mais inquieto, avalia que os Estados entrarão em 2013 numa situação de absoluta insegurança jurídica. A julgar pelo aviso que o ministro Gilmar Mendes deu em evento ocorrido no próprio Congresso, a insegurança é, a essa altura, também financeira. Repare aqui.
Ouvido pelo blog, um ministro do STF informou que vale o que está escrito no acórdão expedido pelo tribunal em 2010. Como assim? “As regras do rateio do FPE expiram no final do ano”, disse o magistrado. “O processo transitou em julgado. Não há que falar em prorrogação de prazo.”
Ele prosseguiu: “Se a União continuar repassando os recursos em 2013, vai fazê-lo à revelia do Supremo, por sua conta e risco. Suponha que um daqueles Estados que acionaram o tribunal, obtendo ganho de causa, peticione para pedir o cumprimento da decisão judicial. O Supremo não pode simplesmente lavar as mãos. Acusam-nos de judicializar a política. É bobagem. Não agimos de ofício. Somos provocados. Quem provoca o STF? Neste caso, como em tantos outros, a resposta é a mesma: os políticos.”
Irônico, o ministro recordou que uma das ações que levaram o STF a deliberar sobre o FPE foi protocalada pelo Mato Grosso numa época em que o Estado era governado por Blairo Maggi. “Paradoxalmente, ele hoje é senador da República.”
- Em tempo: Aqui, notícia veiculada no portal do STF com o relato da sessão em que o rateio do FPE foi declarado “inconstitucional.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário