quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A ferocidade misógina do modelo de acumulação, por Carlos Tautz



Há 30 anos, massacravam-se menos mulheres no Brasil do que agora. Nossa sociedade tolerava o assassinato de uma mulher a cada período pouco superior a seis horas. Hoje, deixamos matar uma mulher a cada 1 hora e 57 minutos, mostrando que o avanço da nossa ferocidade misógina avançou em uma proporção mais ou menos equivalente ao da concentração da renda nas últimas décadas.
“Apenas” sermos uma sociedade machista não explica por inteiro essa barbárie. Há de haver mais razões para que o assassinato feminino houvesse triplicado em três décadas e tenha virado epidemia.
Tome-se o exemplo da escravidão no Brasil. Ela terminou muito depois do que em todos os demais países justamente porque nosso modelo de acumulação baseava-se na extração total da mais valia.
Essa é uma pista para os cientistas sociais explicarem as estatísticas macabras contra as mulheres, que foram divulgadas ontem, no Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Se a este exemplo juntarmos as pesquisas sobre mercado de trabalho, mostrando que a renda distribuída entre mulheres é muito menor do que entre homens, talvez se conclua que, a exemplo da escravidão, o ódio que leva ao genocídio feminino é estrutural.
No limite da exploração, elimina-se a vendedora da força de trabalho. O modelo se impõe pela força.
Entretanto, para que se use violência como método, ainda são necessários instrumentos de convencimento para que o modelo se perpetue. Necessita-se de um consenso social sobre uma suposta passividade feminina. Milhões precisam repetir isso todos os dia para que sejamos convencidos.
Eu me dou conta disso ao perceber que Maria se destaca em nossas orações não pelas suas qualidades de mulher, mas por ter concebido, ainda virgem e bendita, o bendito fruto.
Seu filho homem, entretanto, é santificado por seu próprio nome e são feitas todas as suas vontades. Esse é o mantra que repetimos todos os dias e noites nos ouvidos de nossas filhas, implicitamente dizendo a elas qual o papel que lhes reservamos: serem reprodutoras anímicas.
Quando elas se recusam a cumprir esse destino, aplicamos-lhes a pena capital e aumentamos a proporção de mulheres assassinadas, para que suas funções sociais sejam bem definidas.
Elas devem operar, e não comandar – as comandantes são a exceção que se só confirmam a regra.
Diante desse cenário e desses números, supostos “avanços” femininos precisam ter seu significado real fortemente relativizado. De nada valerá ter levado uma mulher expoente ao mais alto posto da República enquanto uma anônima que seja continuar a ser sangrada neste País.

Carlos Tautz, jornalista, é coordenador do Instituto Mais Democracia – Transparência e Controle Cidadão de Governos e Empresas

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