Por Carlos Brickmann em 08/05/2012 na edição 693
Os autores são dois repórteres conhecidos, Marcelo Netto e Rogério Medeiros. A editora é conceituada, a Topbooks. O tema do livro Memórias de uma guerra suja, que acaba de ser lançado, é explosivo: um delegado da polícia política da época da ditadura, hoje convertido ao evangelismo, diz ser responsável pelo desaparecimento de dez participantes da luta armada, cujos corpos, garante, incinerou nos fornos de uma usina de açúcar; confessa o assassínio de mais de cem pessoas; diz ter participado do assassínio do jornalista Alexandre von Baumgarten, na ocasião proprietário da revista O Cruzeiro e autor do livro Yellow Cake, sobre o fornecimento de urânio brasileiro, na época da ditadura militar, ao governo iraquiano de Saddam Hussein, que queria fabricar uma bomba atômica. E afirma que o delegado Sérgio Fleury, símbolo da repressão aos inimigos do regime, não morreu num acidente: foi assassinado, por ter fugido ao controle dos generais que comandavam o regime militar.
Há mais: diz ter participado, também, de uma tentativa de assassínio de Leonel Brizola, que seria atribuída ao regime cubano de Fidel Castro.
Sensacional – se for verdade. O delegado Cláudio Guerra, que declara ter participado de todos esses crimes, jamais entrou nas listas de torturadores e assassinos elaboradas por adversários do regime militar. O mais completo livro sobre torturas, o Brasil Nunca Mais, elaborado pelo jornalista Ricardo Kotscho com a inestimável supervisão e colaboração do cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, e do reverendo James Wright, não cita seu nome. Não é impossível que Cláudio Guerra tenha cometido os crimes que confessou; nem que tenha utilizado os meios de atuação que disse ter usado. Os métodos das ditaduras latino-americanas incluíam ações brutais, como jogar corpos (ou prisioneiros vivos) em alto-mar. Mas é improvável que tivesse feito tudo isso sem jamais incorrer em suspeitas de parentes, amigos e correligionários das vítimas.
Em determinado caso específico, Guerra é desmentido por um interessado direto: o delegado Paulo Fleury, filho do delegado Sérgio Fleury. A versão oficial da morte de Fleury é que foi causada por uma queda acidental, ao passar de um barco para outro. Guerra diz que Fleury foi dopado primeiro e levou uma pedrada na cabeça para cair entre os barcos.
O filho de Fleury diz que a versão é absurda: que sua mãe estava ao lado do delegado o tempo todo e não houve pedrada, nem doping.
Cláudio Guerra cita torturadores e assassinos – os de sempre, sem novidades. Revela a localização de cemitérios clandestinos. E, em sua narrativa, explica por que não foi possível encontrar gente desaparecida: seus corpos haviam sido destruídos (e, em troca do favor prestado, a usina teria tido acesso privilegiado a verbas oficiais, ultrapassando todas as crises do setor sucroalcooleiro sem qualquer problema). A usina, entretanto, entrou em decadência: em 1995 suspendeu suas atividades. Segundo o Incra, não as retomou; segundo os proprietários da usina, em 1997 foi iniciado um plano de revitalização da empresa. Como o livro saiu nestes dias, nenhum repórter foi ainda à usina verificar as informações.
De qualquer forma, é um livro fascinante – que, com certeza, será um best-seller por muito tempo. E traz, em si, os elementos que permitirão comprovar se narra ou não fatos reais. Pode-se procurar, por exemplo, os cemitérios clandestinos apontados por Cláudio Guerra. Pode-se acompanhar sua atividade como delegado, inspecionando documentos como pagamento de horas extras, despesas de viagens, diárias, fornecimento de passagens. Bons investigadores têm, neste livro, material para trabalhar em busca da verdade.
E por que Cláudio Guerra falou? Aos 71 anos, diz, quer estar em paz com sua consciência. Pode ter iniciado um movimento que revisará toda a história recente do país. E teve a sorte de encontrar dois repórteres que se convenceram de que, em suas mãos, estava uma das melhores histórias dos últimos tempos.
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