sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O racista que agride Aranha é o mesmo que elege (e aplaude) o Kanelão

Matheus Pichonelli
A imagem é clara. Do alto da arquibancada de cadeiras numeradas, com um sorriso de deboche e um agasalho azul confortável, a menina grita de boca cheia em direção ao gramado: “Ma-ca-co”. Fazia coro, junto com outros torcedores do Grêmio, às ofensas sofridas pelo goleiro Aranha, do Santos, na partida contra a equipe gaúcha, em Porto Alegre.

Não é a primeira vez que isso acontece – nem é um fenômeno apenas do Sul, diga-se. Dias atrás, torcedores de minha cidade, Araraquara, no interior paulista, hostilizaram as jogadoras de uma equipe do Nordeste que enfrentariam o time feminino da Ferroviária na Fonte Luminosa. Também não é um fenômeno apenas nacional, como atestam as agressões sofridas por Daniel Alves, na Espanha, e pelo volante Tinga, no Peru.

Nessas horas, fico tentado a dizer que o futebol é o último reduto da barbárie: lá, até mesmo os cidadãos bem-comportados das horas úteis se sentem à vontade para expelir todos os monstros que moram neles. Na arquibancada eles têm a companhia de uma legião de outros monstros expelidos pelo grito.

O fato é que a arquibancada é só um espaço de expressão coletiva represada nos ambientes restritos – não necessariamente privados. E se um torcedor se sente à vontade para chamar alguém de macaco em seu estádio é porque recebeu da sociedade a licença para atirar. Afinal, o que mais tem por aí é cabeça pensante (e branca) para dizer que o preconceito está na cabeça não pensante (os defensores do movimento negro, segundo eles). Existe livro para mostrar que não somos racistas. Colunistas que veem na militância a causa da agressividade – segundo eles, desnecessária.  Ou comediantes que chamam colegas de macacos sob o argumento de que não se importam em ser chamados de girafa.

O fato é que, em um país onde 50,7% dos habitantes se declaram negros ou pardos, segundo o Censo de 2010 do IBGE, o sentimento de conforto para agredir um atleta pelo fato de ele ser negro não nasce nem morre na arquibancada. É apenas a verbalização da violência encravada em uma sociedade que se acostumou a uma ordem pós-escravidão. Uma ordem segundo a qual negros e pardos ainda são maioria nas cadeias e nos bairros pobres, mas minoria nas universidades, nos postos de destaque das empresas e na frequência aos equipamentos culturais como cinema ou teatro.

Mas este é um blog de eleições, e o tema não tem nada a ver com política, certo? Pois só tem. Segundo os dados mais recentes do TSE, do total de 171 candidatos a governador neste ano, apenas 54 são da cor negra (15 negros e 39 pardos). Entre os 181 concorrentes ao Senado, apenas 55 são 40 ou negros. Para deputado, são 3.908 candidaturas brancas, 2.118 pardas e 671 negras. Isso apenas entre os postulantes: entre os eleitos, o funil é ainda maior. Em 2010, o Brasil elegeu 43 deputados e deputadas negros – 8,5% em todo o Parlamento, segundo o Congresso em Foco.

Isso significa que, com menos representantes nos espaços decisórios, menor será a sensibilização sobre as feridas abertas de uma escravidão até hoje mal encerrada (não adianta dar a carta de alforria e usar a cor da pele como critério de “boa aparência” para preencher vagas de emprego). Os fatores de exclusão, que vedam o acesso da maioria negra tanto às arenas de futebol como nas cadeiras do Legislativo, criam o colchão de conforto para manifestações observadas na Arena Grêmio. É o mesmo colchão que leva gente como o senhor Wilson B. Duarte da Silva (PMDB), vereador de Rio Grande (RS) conhecido como Kanelão, dizer que a lei das cotas não fazia sentido porque hoje em dia os negros eram quase brancos – afinal, argumentou, muitos tinham até carros e já saíam com mulheres loiras (atire a primeira pedra quem nunca ouviu esta frase em qualquer ambiente restrito).

O Kanelão é a inversão dos versos de Gil e Caetano de que negros quase brancos e brancos quase negros eram indiferentes apenas na pobreza e na prisão (“presos são quase todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres”). Em tempo: fora da arquibancada, digo, do plenário, o Kanelão se justificou dizendo que não era racista, pois tinha até funcionários negros (atire a segunda pedra quem nunca ouviu o mesmo discurso em casa, no trabalho, na escola).

Nesse caldo de violência assentida, trabalhadores como Aranha só deixarão de ser alvo de racismo quando admitirmos que o Brasil ainda é um país racista. E dizer que o Brasil é um país racista não significa dizer que somos um país dividido ou composto por uma maioria racista, mas sim que uma minoria, confortável pelo silêncio dos demais, é capaz de produzir estragos, seja por meio da ofensa, seja na pura descriminação – a que torna o acesso de negros a determinados espaços, como a universidade, mais difícil do que para os brancos.

E o que o seu candidato tem a dizer sobre isso? O que ele pensa do sistema de cotas nas universidades e no funcionalismo? É contra? A favor? O que propõe no lugar? O que ele pensa sobre as mortes de negros pelos policiais de seu Estado? E sobre as secretarias voltadas à defesa do movimento negro? Elas estão no pacote de pastas inúteis que devem ser enxugadas para economizar o orçamento?

As perguntas estão no ar e não são simples de serem respondidas. Mas cada vez que nós, eleitores, dizemos que Dia da Consciência Negra é papo de militante que não quer trabalhar, ou aceitamos que chamar alguém de macaco é igual chamar alguém de branquelo ou girafa, ou que o Mussum, sim, era um negro legal porque aceitava piada contra a própria cor, ou que os movimentos negros (e feministas, e LGBT e tantos outros) são expressões populistas de quem têm preconceito contra eles mesmos, nos transformamos cúmplices do crime que ontem atingiu o goleiro Aranha. Mesmo estando a quilômetros da Arena do Grêmio.

Não tenha dúvida: a estupidez da manifestação racista é tão nefasta quanto os políticos por quem juramos sentir nojo. Até porque ajuda a elegê-los.

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