sábado, 26 de julho de 2014

ONDE OS FILHOS MORREM


26 de julho de 2014
 MOISÉS MENDES
Jornalista
moises.mendes@zerohora.com.br

Puxei para perto do computador, para que ficasse de prontidão ao meu lado, um livro que levei tempo para ler. Lia cinco páginas e parava. Extenuado, puxava ar na janela e prometia: amanhã continuo.
Foi assim por meses, em dias salteados, desde que ganhei o livro do meu amigo Carlos André Moreira, há três anos. Minha força era vergada pelas aflições de um pai e de uma mãe.
O livro é Fora do Tempo, de David Grossman (Companhia das Letras, 2009). Os que lerem esse livrinho de 170 páginas poderão se afastar das convicções exacerbadas em torno do conflito entre israelenses e palestinos.
Quase tudo o que você não aguenta mais sobre essa guerra perde sentido. Claro que não falo das informações, por menos imparciais que sejam, mas da repetição dos argumentos engajados sobre quem tem as mais ancestrais das razões, sobre as versões políticas e religiosas para cada pedaço de terra e sobre a desqualificação do inimigo, de sua história e de suas crenças.
Grossman é israelense e por isso minha leitura pode, de imediato, ser enquadrada como tendenciosa pelos que se entrincheiram em posições categóricas em debates nas esquinas.
O próprio Grossman é visto com extrema desconfiança por setores da sociedade israelense. Mas seu relato poderia ser o de qualquer pai destruído por qualquer guerra _ ser judeu é a sua condição, não a sua condenação antecipada. E Grossman é um grande escritor.
Em 2006, ele escrevia um romance sobre a mãe de um soldado que sai de casa e perambula por Israel. Ela tenta escapar da visita dos militares que um dia iriam informá-la de que o filho havia morrido na guerra sem fim.
Perambulando, enganaria os anunciadores da morte. O livro era escrito havia três meses quando o sargento Uri Grossman, de 20 anos, foi morto numa batalha contra o Hezbollah, no Líbano. Grossman perdia o filho que não queria lutar.
Uri ficara conhecido entre os soldados israelenses como “o esquerdista”, por adotar as posições pacifistas do pai. Morreu no dia 12 de agosto de 2006. Rodrigo Lopes, repórter de ZH, cobriu essa guerra de 33 dias.
Para sobreviver, Grossman terminou o livro sobre a mãe que sai de casa.  Chama-se A Mulher Foge (também da Companhia), e boa parte do que conta é inspirado em coisas que Uri contava ao pai.
Pouco depois, o escritor publicou Fora do Tempo. Desta vez, quem perambula é o homem que perdeu o filho na guerra. O livro tem várias vozes em versos, como poemas medievais. O homem atormentado vai andando e narrando a memória daquele filho forte, que voltava da praia com cheiro de sal nos cabelos.
O pai e a mãe, que fica em casa, mas também narra a caminhada, são tomados pelas lembranças do filho criança, do cheiro das fraldas e do cobertor de bebê.
Grossman é um pacifista, por isso mesmo desimportante para os que produzem guerras. No enterro de Uri, em Jerusalém, disse: “Ele tinha valores, uma palavra tão aviltada ultimamente. Porque deixou de ser moda ter valores ou ser humanista, ou sensível ao desamparo do outro, mesmo que o outro seja seu inimigo no campo de batalha.”
Por mais que você se esforce para assimilar a aflição alheia, a sua dor _ como diz a apresentação do livro _ será sempre de segunda mão, será a dor de quem observa a distância o inferno dos outros.
Você não pode, diz Grossman, ver a guerra como um jogo. Você não está numa torcida. Mas precisa ser apresentado aos horrores de uma guerra. E agora o horror sem retoques, sem volteios, está, sim, em Gaza.
É ali que os pais perambulam pelos filhos que morrem antes de serem soldados. Esta é a verdade, como a que se apresenta ao pai caminhante de Fora do Tempo, que é, enfim, o próprio Grossman:
E ele-mesmo está morto
eu entendo, quase,
o significado desses
sons: o menino está morto.
eu reconheço assim
nessas palavras a verdade
sem conforto. Ele está morto.
Ele está morto.
Mas sua morte
sua morte
não morreu

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