É uma sensação estranha, meio melancólica (ainda mais em dia chuvoso aqui no Rio), ler um texto original e inédito de alguém que acabou de falecer. O GLOBO antecipou para hoje otexto de João Ubaldo Ribeiro, já pronto para publicação no domingo, dia de sua inesquecível coluna. Como não poderia deixar de ser, lá está sua fina ironia contra esse mal que assola nosso país: o excesso de paternalismo de um estado que nos trata não como cidadãos adultos, mas como mentecaptos, crianças indefesas, perfeitos imbecis.
João Ubaldo divaga sobre a possível regulamentação sobre o uso adequado do papel higiênico: “Por exemplo, imagino que a escolha da posição do rolo do papel higiênico pode ser regulamentada, depois que um estudo científico comprovar que, se a saída do papel for pelo lado de cima, haverá um desperdício geral de 3.28 por cento, com a consequência de que mais lixo será gerado e mais árvores serão derrubadas para fazer mais papel. E a maneira certa de passar o papel higiênico também precisa ter suas regras, notadamente no caso das damas, segundo aprendi outro dia, num programa de tevê”.
A gente ri para não chorar. Imaginar as Brigadas Sanitárias fiscalizando inúmeras regras sobre o uso do papel higiênico é algo cômico, hilário, e ao mesmo tempo trágico. Afinal, sabemos que, no Brasil, nunca é bom exagerar na piada, pois um dia ela pode muito bem se tornar realidade. É nossa própria realidade que desafia qualquer autor de histórias surreais, pois muitas vezes é impossível crer no que sai da caixola de nossos deputados e vereadores.
No restante do artigo, o escritor baiano menciona outras ideias “incríveis” de regulamentação de nossas vidas. Nem mesmo aquilo que comemos fica livre dos tentáculos pegajosos dos burocratas e governantes “ungidos”, aqueles que sabem melhor como cada um deve viver a própria vida. Sobre a Lei da Palmada, sua síntese é devastadora:
Ainda é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas tenho certeza de que, protegendo as nossas crianças, ela se tornará um exemplo para o mundo. Pelo que eu sei, se o pai der umas palmadas no filho, pode ser denunciado à polícia e até preso. Mas, antes disso, é intimado a fazer uma consulta ou tratamento psicológico. Se, ainda assim, persistir em seu comportamento delituoso, não só vai preso mesmo, como a criança é entregue aos cuidados de uma instituição que cuidará dela exemplarmente, livre de um pai cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na cadeia e mãe proibida de vê-la, educada por profissionais especializados e dedicados, a criança crescerá para tornar-se um cidadão modelo. E a lei certamente se aperfeiçoará com a prática, tornando-se mais abrangente. Para citar uma circunstância em que o aperfeiçoamento é indispensável, lembremos que a tortura física, seja lá em que hedionda forma — chinelada, cascudo, beliscão, puxão de orelha, quiçá um piparote —, muitas vezes não é tão séria quanto a tortura psicológica. Que terríveis sensações não terá a criança, ao ver o pai de cara amarrada ou irritado? E os pais discutindo e até brigando? O egoísmo dos pais, prejudicando a criança dessa maneira desumana, tem que ser coibido, nada de aborrecimentos ou brigas em casa, a criança não tem nada a ver com os problemas dos adultos, polícia neles.
Ficamos na dúvida: devemos rir, ou devemos chorar? Claro que Ubaldo está exagerando, forçando a barra, como ele mesmo reconhece; mas é a lógica do que vai na mente dos “fascistas do bem”, cuja sede de poder é insaciável.
Ontem, em minha página do Facebook, lamentei a irreparável perda do colunista:
O Brasil acorda hoje mais burro, mais pobre do ponto de vista intelectual, mais sem graça. R.I.P. João Ubaldo Ribeiro. Fará muita falta aos domingos!
Em seguida, sem saber qual seria o tema de sua última coluna, comentei sobre o excesso de leis criadas pelos parlamentares que servem apenas para dificultar nossas próprias vidas:
Muitos estão revoltados com o recesso parlamentar remunerado. Sou de opinião diferente. Acho que sairia mais barato para o país se pagássemos os deputados para ficarem em casa o ano inteiro, sem fazer nada, sem ter como dar vazão a esta obsessão legiferante que nos custa, sem dúvida, bem mais caro!
Pois bem: João Ubaldo Ribeiro foi, com todo o seu brilhantismo, um dos que mais atacaram essa obsessão legiferante de nosso país. Como fará falta! Ironia das ironias, agora será impossível pegar um pedaço de papel higiênico, enquanto houver oferta*, sem lembrar do imortal…
* Digo isso pois sabemos que na Venezuela bolivariana falta papel higiênico, como faltava na União Soviética também. Se Dilma vencer as eleições e o Brasil caminhar ainda mais na direção do “socialismo do século 21″, pode ser que o papel higiênico vire objeto de luxo por aqui também.
Rodrigo Constantino
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