sábado, 19 de julho de 2014

Cartas de Buenos Aires: Copa - Rivalidade e racismo


 Gabriela Antunes
A Fifa levou cartazes para o campo de futebol em uma campanha contra a discriminação. Mas este Mundial foi marcado pela ressurreição de ideias reacionárias, sendo a principal o racismo.
O esporte acabou virando veículo da discórdia. Vieram à tona questões superadas, a começar pela escalada de rivalidade Brasil-Argentina, apesar dos times não se depararem há um quarto de século em uma Copa do Mundo. Ainda assim, encontram um no outro um rival imaginário.
Os dois países dependem do comércio bilateral, tomam posições conjuntas em quase todos os assuntos internacionais e se apóiam mutuamente em diversas áreas de cooperação. Só não se entendem em matéria de futebol.
Os argentinos nunca entenderam o porquê dos brasileiros terem torcido pela Alemanha. Os brasileiros, por outro lado, não compreendem porque os argentinos já chegaram ao país provocando.
“Olho por olho e o mundo acabará cego”, dizia Gandhi. E nesta cegueira regional estamos vendo renascer a xenofobia e o racismo.
Nas redes sociais argentinas foi usada casualmente a expressão “negros de mierda”. Empregada na Argentina pejorativamente, “negro de mierda” não se refere apenas à cor da pele. É usada contra os pobres, favelados, pedreiros, de forma depreciativa, de uma maneira às vezes tão usual que deixaria qualquer brasileiro de cabelo em pé.

A Fifa bem que tentou, mas a rivalidade e o racismo reinaram fora do campo. (FOTO FIFA)

Não é o único termo que é capaz de deixar alguém desacostumado um tanto chocado. A palavra “quilombo” é casualmente utilizada para qualquer tipo de desordem ou bagunça.
O interessante é que os quilombos eram estruturas altamente hierarquizadas e organizadas, o exato oposto do sentido dado em espanhol.
Mas de arrepiar mesmo foi a quantidade de comentários com a expressão “negros de mierda” de internautas sobre os brasileiros durante a Copa e sobre os argentinos que protagonizaram o quebra-quebra no Obelisco depois da derrota para a Alemanha.
Os “negros de mierda” constituíram 65% do exército libertador de San Martin. Metade da Argentina foi erguida pelos “negros de mierda”, assim como no Brasil. A Argentina só se “embranqueceu” graças às guerras, pragas e, por que não dizer, ao genocídio paulatino.
No Brasil também não podemos nos orgulhar historicamente do tratamento dado aos nossos “negros de mierda”. Mas é cada vez mais politicamente incorreto, para não dizer crime, usar expressões como essas.
Com o orgulho da raça, graças a Deus, nesse continente somos todos “negros de mierda”, geograficamente fadados à latinidade, herdeiros daqueles que levaram nas costas as veias abertas dos nossos países. 

Gabriela G. Antunes é jornalista e nômade. Cresceu no Brasil, mas morou nos Estados Unidos e Espanha antes de se apaixonar por Buenos Aires. Na cidade, trabalhou no jornal Buenos Aires Herald e hoje é uma das editoras da versão em português do jornal Clarín.Escreve aqui todos os sábados.

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