sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Cartas de Nova Iorque: Retratos no metrô, por Luisa Leme


Eram oito horas da manhã e mesmo com a neve acumulada lá fora e a chuva que cai, a linha 6 verde do metrô corre do lado leste de Manhattan pra me levar do Lower East Side até o Upper East. O vagão e as pessoas estavam estranhamente tranquilos, prontos para serem observados.
Evitando os rostos mais sisudos e os malucos que são muitos no metrô de Nova Iorque, é só olhar em volta para a viagem ficar mais interessante. Não é difícil encontrar as mesmas pessoas, que pegam o mesmo vagão no mesmo horário todos os dias. O hábito faz com que eu as reconheça. E nessa semana trombei com um dos meus personagens favoritos, ele parece com o ator Timothy Spall, a cara do Castrinho da Escolinha do Professor Raimundo. Lembra?
Ele está indo trabalhar, mas todos poderiam achar que ele pega a linha 6 por puro prazer. Uma pasta surrada, jeans, tênis pretos imitando sapatos, camiseta e moletom. Os cabelos ruivos estão dando mais espaço para a testa, as bochechas sempre vermelhas, e óculos discretos - desses quase sem armação. Os fones de ouvido azuis conectados a um tocador de mp3 velho, imitando um iPod. Ele gosta de clássicos do jazz, interpretados por cantoras pelo que eu consegui ver no monitor do radinho.
Em meio aos telefones, tablets, e todo “personal space” americano, ele carrega folhas de papel branco e uma caneta preta (um marcador permanente). O transeunte é mestre de observar as pessoas, e não o faz de maneira discreta. O pescoço estica, os olhos se apertam, e a cabeça move rapidamente entre o momento proibido, de encarar estranhos no metrô, e a folha de papel.


Alguns segundos depois, o senhor sentado do outro lado do vagão surge na folha. O desenho é bem rabiscado, as vezes atrapalhado pelo movimento do trem, e a única moldura são os riscos que o artista faz para representar as pilastras do vagão. Mas a expressão de cada um dos “modelos” não poderia ser mais perfeita.
Sobrancelhas franzidas, guarda-chuva na mão, jornal estirado em frente ao peito. Mal reconheci o retrato do homem alto que acabara de entrar depois da porta abrir e uma nova produção começa - com a mulher ao meu lado. Cabelo preso, casaco torto no braço. Ela deixa o trem na próxima estação…o jeito é começar outra folha. Homem de costas, de orelhas grandes, um senhor com nariz pontudo, um gordinho com uma cara engraçada.
O desenhista é uma máquina de retratos. São tantos que as folhas quase acabam, com dois ou três retratos produzidos entre uma estação e outra. Folha branca, rabiscos, um retrato, e o desenhista parte para outra pessoa.
Ele me conta que já foi ameaçado, que as pessoas tiram foto dele com telefones, que ele deixa muita gente zangada. Mas que o treino é positivo para o artista, e eu adoro ver a cara dos nova-iorquinos que começam o meu dia, todos os retratos do metrô.

Luisa Leme é jornalista e produtora de documentários. Passou pela TV Cultura e TV Globo em São Paulo, e pelas Nações Unidas em Nova York. Mora nos Estados Unidos há sete anos e fez mestrado em relações internacionais na Washington University in St. Louis. Escreve aqui sempre às quintas-feiras. Mantém o blog DoubleLNYC com imagens e impressões sobre Nova York. Twitter: @luisaleme

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