ZERO HORA - 18/09
Sei de uma moça que, aos 30 anos, trabalhava numa empresa e foi promovida a um cargo de direção. De índio passou a cacique, e todos os seus colegas a cumprimentaram, mas a partir dali começava sua despedida da profissão que escolhera: logo percebeu que não sabia mandar. Sentia-se constrangida com a liderança concedida. Não tinha voz firme para ordenar isso ou aquilo, para lidar com subordinados. Descobriu que estar no topo de uma hierarquia não era para o bico dela. Então, juntou seus pertences e saiu pela porta, dando adeus ao emprego e encerrando uma carreira que havia sido promissora até ali.
Mudou radicalmente de vida: virou colunista de jornal, passou a trabalhar em casa e viveu feliz para sempre até semana passada, quando leu uma reportagem sobre o lançamento de um novo smartphone que funciona com comando de voz. Ela não é fanática por gadgets, não tem smartphone, só um celularzinho mequetrefe, mas sabe que a tecnologia avança rapidamente para esse novo modelo de acessibilidade: em breve não será preciso mais nem tocar nos telefones. Bastará ordenar: “Ligar para Mariana” ou “navegar para o aeroporto Salgado Filho”.
Em casa, a mesma coisa: “Acender a luz”. “Apagar a tevê.” “Água quente.” “Mais quente.” “Menos.” “Mais.” “Perfeito, obrigada.”
No carro: “Abrir a porta”. “Ligar o rádio.” “Arrancar.” “Frear, frear!”.
Está nascendo uma nova geração de líderes. Aos dois anos de idade, a criança já estará dando ordens aos objetos, falando com lâmpadas, chuveiros, geladeiras, notebooks. Aparelhos reconhecerão o nosso timbre vocal. Assim é que vai ser.
A tal moça, que já dava como superada a questão de não saber mandar, está ficando preocupada. Lá vem o problema da hierarquia outra vez. Ela é alérgica a autoridade. Tocar levemente nos objetos para que funcionem sempre lhe pareceu eficiente e educado. Até com o marido dá certo: basta um toquezinho no seu braço e ele acorda, ele para de falar alto, ele diminui a velocidade, ele presta atenção em quem entrou na sala. Com os objetos, a mesma coisa. Interruptores, teclas, trincos, torneiras, controles remotos – um toque com os dedos, e eles fazem sua parte sem que ela precise dizer nada. A vida funcionando num silêncio respeitoso.
Porém, em breve, ela terá que falar sozinha como se fosse maluca. “Acender.” “Apagar.” “Abrir.” “Trocar de faixa.” “Fechar as cortinas.” “Programar despertador.” Ela espera que não seja tão rápido. Talvez leve, sei lá, uns 10 anos para a rotina do ser humano entrar nessa esquizofrenia, mas no fundo ela já entendeu que não há como lutar contra o progresso – ou ela adere, ou junta seus pertences e, de novo, procura a porta de saída.
Hoje, no comando de voz, o senhor Celso de Mello. Ao decidir se cabe reexaminar as acusações contra os mensaleiros, ele poderá inaugurar uma nova era no país ou manter a impunidade e a desesperança de virmos a ser, um dia, uma nação respeitada. Basta que ele diga “Não”. Cruzemos os dedos.
Sei de uma moça que, aos 30 anos, trabalhava numa empresa e foi promovida a um cargo de direção. De índio passou a cacique, e todos os seus colegas a cumprimentaram, mas a partir dali começava sua despedida da profissão que escolhera: logo percebeu que não sabia mandar. Sentia-se constrangida com a liderança concedida. Não tinha voz firme para ordenar isso ou aquilo, para lidar com subordinados. Descobriu que estar no topo de uma hierarquia não era para o bico dela. Então, juntou seus pertences e saiu pela porta, dando adeus ao emprego e encerrando uma carreira que havia sido promissora até ali.
Mudou radicalmente de vida: virou colunista de jornal, passou a trabalhar em casa e viveu feliz para sempre até semana passada, quando leu uma reportagem sobre o lançamento de um novo smartphone que funciona com comando de voz. Ela não é fanática por gadgets, não tem smartphone, só um celularzinho mequetrefe, mas sabe que a tecnologia avança rapidamente para esse novo modelo de acessibilidade: em breve não será preciso mais nem tocar nos telefones. Bastará ordenar: “Ligar para Mariana” ou “navegar para o aeroporto Salgado Filho”.
Em casa, a mesma coisa: “Acender a luz”. “Apagar a tevê.” “Água quente.” “Mais quente.” “Menos.” “Mais.” “Perfeito, obrigada.”
No carro: “Abrir a porta”. “Ligar o rádio.” “Arrancar.” “Frear, frear!”.
Está nascendo uma nova geração de líderes. Aos dois anos de idade, a criança já estará dando ordens aos objetos, falando com lâmpadas, chuveiros, geladeiras, notebooks. Aparelhos reconhecerão o nosso timbre vocal. Assim é que vai ser.
A tal moça, que já dava como superada a questão de não saber mandar, está ficando preocupada. Lá vem o problema da hierarquia outra vez. Ela é alérgica a autoridade. Tocar levemente nos objetos para que funcionem sempre lhe pareceu eficiente e educado. Até com o marido dá certo: basta um toquezinho no seu braço e ele acorda, ele para de falar alto, ele diminui a velocidade, ele presta atenção em quem entrou na sala. Com os objetos, a mesma coisa. Interruptores, teclas, trincos, torneiras, controles remotos – um toque com os dedos, e eles fazem sua parte sem que ela precise dizer nada. A vida funcionando num silêncio respeitoso.
Porém, em breve, ela terá que falar sozinha como se fosse maluca. “Acender.” “Apagar.” “Abrir.” “Trocar de faixa.” “Fechar as cortinas.” “Programar despertador.” Ela espera que não seja tão rápido. Talvez leve, sei lá, uns 10 anos para a rotina do ser humano entrar nessa esquizofrenia, mas no fundo ela já entendeu que não há como lutar contra o progresso – ou ela adere, ou junta seus pertences e, de novo, procura a porta de saída.
Hoje, no comando de voz, o senhor Celso de Mello. Ao decidir se cabe reexaminar as acusações contra os mensaleiros, ele poderá inaugurar uma nova era no país ou manter a impunidade e a desesperança de virmos a ser, um dia, uma nação respeitada. Basta que ele diga “Não”. Cruzemos os dedos.
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