Ruy Fabiano
A representação da Justiça na figura de uma mulher com os olhos vendados, uma balança numa das mãos e uma espada na outra, tem significação universal conhecida.
A venda representa a impessoalidade em relação ao réu; a balança, o equilíbrio, a justiça propriamente dita, com a garantia do devido processo legal, que pressupõe ampla defesa; a espada, a execução. A Justiça, para ser justa, aplica-se não importa a quem, tendo em vista tão somente o fiel da balança, culminando o processo com a espada, o cumprimento da pena.
Simples e complexo. Nas duas primeiras figurações, resume-se todo o processo judicial, que, no Brasil, pode levar anos, ao ponto da prescrição da pena ou mesmo da morte dos réus.
O processo do Mensalão foi típico quanto à demora. Está em seu oitavo ano e ainda inconcluso. Foi atípico não apenas quanto à qualificação dos réus – o que, no Brasil, configura ineditismo, embora não em democracias mais consistentes -, mas também quanto a seu desdobramento.
De início, o símbolo da Justiça desvestiu-se da venda. Alguns juízes, sim, demonstraram constrangimento diante do status político de alguns dos réus. O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, não poupou elogios a um deles, o deputado José Genoíno, antes de acatar embargos infringentes que tentam demover-lhe uma das penas. Jogou a venda da estátua, que ornamenta a fachada do prédio do STF, no lixo.
O ministro Ricardo Lewandowski, desde o primeiro momento, agiu no sentido de esticar ao máximo o julgamento, interpondo questões de ordem desnecessárias, atendo-se a firulas retóricas e contribuindo para que, ao longo do processo, a composição inicial do tribunal mudasse, de maneira favorável às suas teses.
Logo na primeira sessão, defendeu o fatiamento do processo, que remeteria à primeira instância réus que hoje não têm a prerrogativa do fórum privilegiado, reservado a autoridades em exercício. Ficaria de fora logo o principal deles, José Dirceu.
Lewandowski consumiu toda a primeira sessão com sua questão de ordem de duas horas, defendendo algo contra que tinha votado em sessão anterior. Sim, ele já tinha sido contra o fatiamento do processo, mas, misteriosamente (ou muito pelo contrário), mudou de ideia.
Dois ministros – Carlos Ayres Brito e Cezar Peluso –, que se vinham comportando de maneira coerente com o símbolo da Justiça, aposentaram-se em meio às protelações do processo, as “chicanas”, como as denominou o ministro-relator, e hoje presidente do STF, Joaquim Barbosa.
Os que os substituíram – Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso – coincidentemente associaram-se às ações protelatórias, com votos altamente questionáveis, que se desdobraram em novas e intermináveis sessões.
Zavascki é o responsável pela espantosa teoria de que, mesmo os pedidos de embargos infringentes por parte dos que não têm o direito de pleiteá-los, por não disporem dos quatro votos mínimos favoráveis na votação que os condenou, devem ser examinados em sessão própria, com o contraditório da defesa.
Imagine-se quantas sessões consumirão esse exame absurdo e desnecessário, além do fato de que estimula manobras desonestas por parte da defesa, que se sentirá no dever de propor embargos não autorizados pelo Regimento. Cria-se assim uma jurisprudência profana, que agora se estabelece.
Não é possível que Zavascki, com seu currículo, desconheça o disparate de sua tese, no entanto acolhida. O resultado concreto é o prolongamento indefinido do julgamento.
Eis, então, que alguém, o ministro Gilmar Mendes, com a autoridade de quem já presidiu a Corte – e que tem respeitabilidade técnica e moral para fazê-lo – indigna-se contra “o ridículo” das manobras de alguns de seus pares e denuncia o que vem ocorrendo desde o princípio do julgamento: uma tentativa de não permitir que avance e se insista em mantê-lo andando em círculos.
A fala do ministro Gilmar Mendes é uma peça histórica, que ficará como testemunho de um tempo em que se tenta destruir a credibilidade das instituições. Não obstante a quase indiferença da mídia em relação às suas palavras, foi, até aqui, o ponto alto de todo o julgamento, mais expressivo que as palavras de Celso Mello, quando considerou os réus políticos golpistas.
Mais importante porque ousou falar de - e para - seus próprios colegas. Não procurou culpados do lado de fora, mas na própria Corte, alertando-a para o “ridículo” que protagoniza. Falou para a História – e a Corte o ouviu em significativo silêncio.
Foi, por ironia, voz solidária a Joaquim Barbosa, seu desafeto. Barbosa, ao longo do julgamento, fez os mesmos reparos, mas, em face de seu temperamento mercurial, deu brechas a que seus pares, a pretexto da forma, ignorassem o relevante conteúdo de seus protestos e se ativessem a seus termos, nem sempre protocolares. Gilmar e Barbosa formam uma inesperada - e indispensável - dupla em julgamento que a História julgará.
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