sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Cartas de Seattle: Curso de morador de rua, quer?


Melissa de Andrade
Por que alguém pagaria US$ 2 mil para viver como um morador de rua por três dias com direito a guia turístico? Curiosidade? Pesquisa sociológica? Culpa?
Para aparecer num programa de TV, daqueles em que a famosidade se disfarça para ver se alguém descobre sua identidade?
Seja qual for a motivação, em Seattle você já pode passar por essa experiência com supervisão profissional.
Claro que você não será você. Ou, pelo menos, não parecerá você. Para se entranhar no submundo dos moradores de rua, é preciso virar um deles. Por isso o pacote começa com uma transformação.
Seu disfarce fará com que você passe despercebido entre os moradores de rua – com o efeito colateral desejado de não ser reconhecido pelos amigos.
Devidamente paramentado, você passará três dias e duas noites andando pelos lugares que os moradores de rua andam, comendo onde eles comem e até dormindo onde eles dormem.
A primeira noite será passada em um abrigo, submetendo-se a regras que incluem chegar às 7h da noite e estar pronto para sair às 7h da manhã. Os dias têm a parada obrigatória na biblioteca central da cidade, onde muitos moradores mantém seu “escritório”.
As informações privilegiadas e o acesso aos códigos e particularidades deste mundo ficam por conta do guia turístico, Mike Momany, ele próprio um morador de rua eventual devido a circunstâncias da vida.
Enquanto muita gente se pergunta se o tour é verdadeiro, ou mesmo se o “turismo de pobreza” deveria existir, Momany leva sua ideia muito a sério.
Chama o pacote de Curso Aplicado de Moradia de Rua e indica entre os benefícios o ganho de uma perspectiva real de como o público percebe aqueles que moram na rua. “Você passará a ter mais respeito por quem se vê tendo que enfrentar essa situação”.


Um “curso” assim talvez seja extremo, mas os residentes de Seattle bem que deveriam fazer um voluntariado, participar de debates ou mesmo ler mais para se informar sobre a questão dos moradores de rua na cidade.
Depois da crise, o centro de Seattle está ficando tomado pela população de rua, que aumentou e muito no último ano.
O problema existe, e é um problema social, econômico e de saúde pública que não se resolve ignorando os pedidos de esmola nem evitando os parques onde os moradores de rua gostam de passar o tempo.
Tem gente que claramente cresceu sendo “bem cuidado” e parece deslocado entre os que se vestem e agem do jeito que se costuma associar a mendigos.
Muitas das pessoas que carregam malas brilhosas no centro de Seattle não são turistas – são pessoas comuns que perderam emprego, gastaram as economias todas tentando achar outro e agora carregam a casa naquela mala.
Fazem um curso prático involuntário de morador de rua, sem direito a voltar para uma cama confortável e quentinha depois de três dias de aulas práticas. Poderia acontecer com qualquer um, repetem os documentários na televisão.

Melissa de Andrade é jornalista com mestrado em Negócios Digitais no Reino Unido. Ama teatro, gérberas cor de laranja e seus três gatinhos. Atua como estrategista de Conteúdo e de Mídias Sociais em Seattle, de onde mantém o blog Preview e, às sextas, escreve para o Blog do Noblat.

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