domingo, 7 de julho de 2013

Cartas de Buenos Aires: Imateriais e notáveis, por Gabriela Antunes


Dizem que, na esquina das ruas Paraguay e Scalabrini Ortiz, a apenas uns 150 metros da casa de sua família no bairro de Palermo, no octogenário café Varela Varelita, hoje tomado por estudantes de teatro, personalidades locais e “habitués”, o jovem Che Guevara, que trabalhava então numa banca de revistas, se ajeitava junto à janela para tomar um café e sonhar com o mundo.
Cafés sem cara, sem marca, de cadeias estrangeiras ou “notables”, como se diz por aqui, desses nos quais escritores como Borges e Cortázar imaginaram grandes novelas. Nos bairros tradicionais, como Almagro, Boedo, Centro, Boca, Palermo, Caballito e tantos outros, há lugares que, para muita gente daqui e de fora, se tornaram verdadeiras paixões: Las Violetas, Café Margot, El Gato Negro, El Banderin, La Biela, escolha o seu.
Esse ato aparentemente solitário é tão emblemático da vida na capital que periga virar patrimônio imaterial da humanidade. A candidatura oficial foi recentemente apresentada pela prefeitura de Buenos Aires à Unesco. “O hábito social de tomar café tem a ver com a tertúlia, a cultura, a literatura e a música”, justificou na candidatura o Ministro de Cultura da cidade.
Pela manhã, à tarde ou mesmo à noite, argentinos se sentam em cafés da moda, antigos armazéns ou até mesmo sorveterias para ler o jornal, um livro, olhar o celular ou simplesmente fingir que na metrópole parou o tempo e que, neste século, vamos mais devagar.
O amor por estes estabelecimentos é tão grande que virou ONG, com apoio dos vizinhos do bairro. A #54Bares mantém uma lista dos bares e cafés mais tradicionais da cidade e chega a oferecer um tour para promover essas emblemáticas casas portenhas. A preservação desses estabelecimentos é assunto sério e ganhou comissão de proteção e promoção graças a uma lei da cidade de 1998.

O Gato Negro, na famosa Av. Corrientes, entre os "notables".

O café mais antigo da cidade é o queridinho dos brasileiros em visita à capital, o Tortoni, que senta suas colunas de mármore, vitrais franceses e mobiliário de carvalho sobre a tradicional Avenida de Mayo e viu desfilar por seus salões ninguém menos que Carlos Gardel.
De manhã para acordar, ou no meio da tarde com pão de queijo, os brasileiros são os maiores consumidores de café do mundo, consumindo em média dois quilos de café ao ano, um a mais se o compararmos ao argentino.
Entretanto, um café argentino rende mais, pois ele vem acompanhado de uma pausa, um suspiro disfarçado, um pensamento melancólico dissimulado, este mesmo patrimônio imaterial e notável que faz de Buenos Aires a cidade dos cafés. Mas, mais que isso, é a cidade do café contemplativo, apesar do acesso ao wi-fi.

Gabriela Antunes é jornalista e nômade. Cresceu no Brasil, mas morou nos Estados Unidos e Espanha antes de se apaixonar por Buenos Aires. Na cidade, trabalhou no jornal Buenos Aires Herald e mantém o blog Conexão Buenos Aires

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