segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Churrasco pantaneiro, Por Eduardo Almeida Reis



Ilustração Adriana Alves
Ilustração Adriana Alves
Nos muitos anos que passei no Pantanal, tanto do MS como do MT, constatei que dois ingredientes nos churrascos de lá discrepam dos outros que comemos no mundo inteiro: abstemia e educação. Abstemia, porque as bebidas alcoólicas são proibidas nas fazendas. Educação, por algum mistério pantaneiro, que não descobri até hoje.

Proibir o álcool tem a seguinte explicação: não raras vezes, a polícia fica a uma hora de avião do local das escaramuças. Houve casos de peões, amigos de infância, companheiros de trabalho, que enfiaram suas facas nas barrigas dos colegas só para ver se estavam amoladas. Quando andei trabalhando por lá, só um caçador convidado teve direito ao puro malte destilado na Escócia. Enfartado, era presidente do Banco do Brasil.
Claro que há pessoas educadas em outros churrascos, mas também há muita gente parecida com aquela que se vê nos jantares de nossa “melhor sociedade”: a abertura do salão de refeições corresponde a um salve-se quem puder, e é gente bem alimentada, que não passa os dias em trabalhos exaustivos.

No Pantanal, temos 45 peões, de três comitivas de 15, que montaram às 2 da madrugada para churrasquear no final da tarde. Durante 14 horas no chamado “trabalho do gado”, cada peão estourou três cavalos e passou o dia inteiro movido a guaraná em pó e pedaços de rapadura. Enquanto isso, no acampamento em que se reúnem ao final do dia, um churrasqueiro assa a metade de uma vaca levada do matadouro da fazenda.
Terminado o dia de trabalho, temos cerca de 50 homens em fila para churrasquear: o sócio-diretor da empresa rural, o assessor da diretoria (meu caso), um ou dois convidados, o capataz que também estourou três cavalos e os 45 peões das comitivas. Aí, só vendo para acreditar. Devo admitir que assisti às cenas um monte de vezes e até hoje fico pasmo.

Depois do diretor, do assessor e dos visitantes, que comeram poeira o dia inteiro no curral de trabalho, o capataz tira seu pedaço de carne, um punhado de farinha e o sal necessário. Pedaço pequeno, educadíssimo. Seguem-se os 45 peões que respeitam – pasme o leitor – a ordem de idade. Não há idosos, que teriam morrido durante o dia, mas há vaqueiros de 35, de 40 anos, que entram na frente da peonada. Cada qual tirando, vale repetir, pequeno pedaço de carne. Os peões mais moços, e alguns podem ter 12 ou 14 aninhos, vão às carnes na maior educação, sempre tirando pequenos pedaços, se possível, com os nacos de gordura fumegante.

Todos transportam suas facas às costas, junto com a chaira, peça de aço com cabo de osso ou de madeira, própria para amolar facas. Chaira e faca presas na guaiaca, cinto largo de couro. Ao cair da noite, diretor, assessor e convidados voltam de jipe para a sede da fazenda e a peonada arrancha nas redes lá mesmo, depois da sessão de mentiras, que também faz parte. Dia seguinte, repeteco, mas tem a vantagem de não começar às 2 horas. Podem acordar às 5, que dormiram no campo de batalha. Cavalos recuperados, arreios, pó de guaraná, rapadura e um novo dia de trabalho. E, assim, durante quatro ou cinco dias, sempre terminando com a vaca assada e a espantosa educação, o respeito pelos chefes e pelos mais velhos.

Eduardo Almeida Reis é jornalista e escritor, membro da Academia Mineira de Letras e não tolera carne bem passada. 

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