Ao visitar a sagrada montanha de Taishan, Confúcio, o sábio chinês, deparou-se com uma mulher cujos parentes haviam sido devorados por tigres. Indagou: “Por que não se muda daqui?” Ouviu como resposta o lamento: “Porque os governantes são mais ferozes que os tigres”.
A historinha é um libelo contra os políticos. A desilusão com os governos tem atravessado ciclos históricos, ganhando referências e pontuações que marcam o caráter predador de mandatários que se valem da política como escada para a ascensão pessoal.
Saint-Just, um dos jacobinos da Revolução Francesa, executado após a queda de Robespierre, costumava dizer: “Todas as artes produziram maravilhas, exceto a arte de governar, que só produziu monstros”.
Nessa mesma linha, registra-se uma lapidar frase de John Adams, o segundo presidente dos Estados Unidos:
"Todas as ciências progrediram, menos a de governar, que não avançou, sendo hoje exercida apenas um pouquinho melhor do que há quatro mil anos”.
Concorde-se ou não com a moldura expressiva, o fato é que, aqui e alhures, multiplicam-se exemplos da devastação que governantes e políticos provocam nas mais diferentes roças da res publica.
Apesar dos avanços da democracia nos palcos contemporâneos, os atores políticos extrapolam seus papéis.
Fixemos os olhos ao nosso redor. A par da bateria de denúncias que atingem os costados da administração federal, feitos de governantes municipais derrotados no último pleito têm chamado a atenção.
Inconformados por não terem sido reeleitos ou pela derrota de seu candidato, os guerreiros da maldade espalhados pela Federação abrem um vasto arsenal de armas para atirar contra a população.
A vingança se dá por meio de um leque de atos pérfidos: suspensão de serviços básicos (saúde, transporte, limpeza pública, por exemplo), demissões irregulares de funcionários, calote na folha de pagamentos, nomeações de última hora, realização improvisada de concursos públicos, desprezo pela lei de responsabilidade fiscal etc.
Em algumas localidades, a situação caótica ganhou intensidade com o fechamento de postos médicos, suspensão do transporte escolar e até dos serviços de abastecimento de água.
Apesar da iniciativa saneadora do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, prefeitos conseguem driblar medidas impostas como Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), ações cautelares e preparatórias de ações civis públicas.
Quem não se lembra do folclórico ex-presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, hoje prefeito de João Alfredo, em Pernambuco? Foi obrigado a se submeter a um TAC para regularizar o pagamento de servidores e restabelecer serviços públicos.
E a prefeita de Fortaleza, hein? Luizianne Lins suspendeu o "Réveillon da Paz" por não sentir “legitimada para conduzir uma festa que transcorrerá em meio a uma mudança de gestão". Que cara de pau.
O que explica a vingança contra o eleitorado? Reação ao exercício do voto consciente. Avançamos em matéria de cidadania ativa.
Como se recorda, John Stuart Mill, em suas Considerações sobre o Governo Representativo, divide os cidadãos em ativos e passivos, arrematando que os primeiros fazem bem à democracia, enquanto os segundos são os preferidos dos governantes.
O eleitorado racional se expande, sendo este um dos fatores a explicar o estreitamento de currais eleitorais. Alarga-se a participação do eleitor no processo político, cujos efeitos se fazem ver na renovação dos quadros municipais. Essa nova realidade explica a ação vingativa de prefeitos que receberam o cartão vermelho nas urnas.
O jus sperneandi dos derrotados é uma tentativa de puxar para a atualidade traços do ciclo coronelista que Victor Nunes Leal tão bem descreveu em Coronelismo, Enxada e Voto, cujo lema era: “para os amigos, pão; para os inimigos, pau.”
Negar pão e água ao adversário e favorecer os amigos, máximas da República Velha, ainda inspiram a banda jurássica de nossa política.
O fato é que os avanços do presente, por mais que se multipliquem, não apagaram as marcas do passado. Nos mais diversos campos, da política aos costumes, o Brasil dual se faz ver por meio de uma banda asséptica ao lado de uma banda suja.
De um lado, o cabo de guerra é puxado pelas forças da moral e da ética, sob a bandeira de valores republicanos como o compromisso, a prevalência da coletividade sobre a individualidade, a transparência, a verdade e a justiça; de outro, as forças do atraso se esforçam para ganhar a peleja, usando, para tanto, as armas da emboscada e as curvas dos desvios e ilícitos.
Mas há motivos para comemorar. O Supremo Tribunal Federal chega ao final de um julgamento que, há cinco meses, parecia algo inalcançável. Enxergamos as instituições, malgrado vaidades e querelas entre grupos, funcionarem a contento.
Em um território afamado por impor barreiras quase intransponíveis ao acesso à justiça e onde se edificou gigantesco apartheid social, verificar que os poderosos também podem ingressar no xilindró constitui agradável sensação de que águas cristalinas voltam a banhar o corpo pátrio.
Todos são iguais perante a lei. Essa é a luz que joga claridade sobre instituições e pessoas, pobres e ricos.
Não podemos perder de vista os enclaves do atraso, as teias de maracutaias, as máfias que se incrustam nas malhas da administração nas instâncias federativas. Urge eliminar os focos de corrupção que conectam a burocracia à esfera dos negócios privados.
Holofotes devem ser abertos sobre quadros venais, alguns habitando os mais altos Tribunais, que agem sob suspeita camada de interesses escusos. É bem verdade que os mecanismos de investigação aguçam a percepção e aperfeiçoam as ferramentas de controle. Mas os donos do poder invisível multiplicam garras e escudos de proteção com inimaginável sofisticação.
São trânsfugas morais. Sabem expressar o discurso da honestidade para confundir os incautos. Fazem da hipocrisia a arte de amordaçar a dignidade. Que o Natal ilumine a consciência de todos!
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato
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