terça-feira, 25 de dezembro de 2012

BICHO-BOM E FEIÚRA


Luiz Berto
O que se destacava, logo à primeira vista, era a sujeira de ambos. Vivam do lixo e no lixo. Atrelados à carroça com rodas de madeira, não tinham que ver dois bois puxando sua carga fétida pelas ruas.
Bicho-Bom era baixinho, não tinha dentes e usava um chapéu seboso e gasto. Feiúra era alto e corpulento, rosto inchado de cachaça e pés de solado grosso, sempre descalços. Não fora a já tradicional sujeira da cidade, passariam também os dois por um amontoado de lixo.coisa feia
Viviam fuçando os monturos, catando papéis, vidro e metais. Onde houvesse um monte de lixo, lá estariam os dois a chafurdar, arrancando a sobrevivência dos restos que a cidade jogava fora. Mesmo quando a carroça estava vazia, eles se arrastavam devagar, impando, só parando aqui ou ali para um trago ou para remexer um monturo. De vez em quando, cumprimentavam as pessoas que passavam nas calçadas:
- Oh, bicho bom!
Viviam os dois numa espécie de arapuca que tinham montado com papelão e sacos de cimento vazios, ao lado da Igreja Presbiteriana, aproveitando o muro do cemitério como parede de fundo. A construção era baixa, de tal sorte que eles só podiam entrar de-quatro-pés.
Uma estopa fazia as vezes de porta de entrada. Uns molambos encardidos serviam de cobertor e colchão. Havia também um caixote e um fogareiro a álcool. O chão, sem trato, de terra viva, era lama só, quando chovia. Eles dormiam um ao lado do outro e, quando acordavam pela manhã, o primeiro café era uma talagada de aguardente, comprada com a féria do dia anterior.
Dois anjos, dois bois pacíf icos e exercer sem reclamos a tarefa que a sobrevivência lhes impunha. Eram doces e mansos, incapazes de qualquer questão. Concordavam com tudo e com todos. Eram adorados pelas crianças e vistos com indiferença pelos adultos.
Feiúra inchava mais e mais, e a cada dia que passava a cachaça alterava um tanto as suas feições. Bicho-Bom continuava do mesmo jeito, cuspindo e largando seu cumprimento pelas ruas:
- Oh, bicho bom!
Numa noite chuvosa, eles se recolheram à arapuca e adormeceram logo após a prosa que tiravam sempre. Bicho-Bom acordou na manhã seguinte, mas Feiúra continuou dormindo. Dormiu para sempre, docemente, eternamente. Sem uma dor, sem um reclamo. Bicho-Bom ainda ajudou a empurrar o caixão da caridade, levando o amigo pelas ruas onde tanto haviam caminhado juntos, arrastando a carroça com seus trastes.
Rosto inchado, olhos vermelhos, choroso, tomou uma talagada com o coveiro antes de enterrar Feiúra. Olhou o amigo, sereno e sujo, e pegou novamente na garrafa.
- Precisa falar não: vou tomar a tua também – e emborcou outro trago.
Desmontou a arapuca, vendeu a carroça, jogou os molambos dentro de um saco e sumiu a pé pelo mundo.
Nunca mais foi visto em Palmares.
Do livro “A Prisão de São Benedito”, edição de 1982

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