Augusto Nunes
Em agosto de 2005, num texto publicado no Jornal do Brasil, lembrei que a vida de adolescente em cidade pequena era bem menos divertida antes da revolução dos costumes desencadeada no fim dos anos 60. As moças se casavam virgens, motel só aparecia em filme americano, drive-in era coisa da capital. A esfregação nunca ia muito longe. E também os jovens nada saberiam de sexo se não houvesse, em qualquer município com mais de 10 mil habitantes, uma zona.
Ninguém chamava pelo nome completo ─ zona do meretrício ─ aquele punhado de casas com uma luz vermelha na varanda, plantadas no difuso território onde a cidade já acabou sem que o campo tenha começado. O mobiliário se limitava à mesa com cinco ou seis cadeiras, um sofá, três ou quatro poltronas e uma vitrola antiga. Às vezes, nem isso. O que não podia faltar eram a cama de casal em cada quarto e o quadro de São Jorge na parede da sala.
Bonito, aquilo. Os trajes de guerreiro, o corcel colérico, a lança em riste, o dragão subjugado, as imagens beligerantes contrastavam esplendidamente com a expressão beatífica. Todo santo de retrato é sereno, mas nenhum se mete com monstros que soltam fogo pelas ventas. Só um São Jorge de bordel poderia arrostar tamanho perigo com aquela placidez que sublinhava o espetáculo da coragem.
Concentrado no duelo tremendo, o exterminador de dragões não prestava a menor atenção no que acontecia fora do retrato. Na sala, prostitutas e clientes negociavam o acerto que os levaria a algum dos quartos escurecidos pela meia-luz que eternizava o crepúsculo. Deles não paravam de chegar sons muito suspeitos, mas o santo guerreiro nada ouvia. Estava na parede para proteger a zona do meretrício, não para vigiá-la. Quem luta com dragões não perde tempo com batalhas de alcova.
São Jorge de bordel era chamado naquele tempo todo homem que mantinha a cara de paisagem enquanto desfilavam a um palmo do nariz iniqüidades, bandalheiras e delinqüências. O filho abandonara os estudos, a filha se apaixonara pelo cafajeste do bairro, a mulher vivia arrastando vizinhos para o quarto do casal, o sobrinho furtava as economias da avó — e a tudo seguia indiferente o chefe de família. Como um São Jorge de bordel.
Como um São Jorge de bordel sempre agiu Luiz Inácio Lula da Silva. O advogado Roberto Teixeira nunca lhe cobrou aluguel pela casa onde Lula viveu durante oito anos. O inquilino fez de conta que nem notou. Em 2002, sobrou o dinheiro que faltara às campanhas anteriores. Lula não fez perguntas sobre o milagre. Tampouco quis saber quem financiara a milionária festa da vitória na Avenida Paulista.
Instalado no gabinete presidencial, não enxergou as agudas mudanças na paisagem. Bons parceiros como Djalma Bom estacavam na secretária do ajudante de ordens. Entravam sem bater na sala presidencial aliados como Pedro Correia ou Valdemar Costa Neto. Fundadores do PT eram expulsos do partido. Roberto Jefferson ganhava cheques em branco.
Sílvio Pereira e Delúbio Soares se tornaram clientes assíduos da casa, ganharam salas para negociar com a freguesia, assimilaram hábitos de novo-rico. Lula não ouviu o ronco do Land Rover de Silvinho nem a barulheira dos jatinhos de Delúbio. Não percebeu que sindicalistas promovidos a diretores de banco agora usavam gravata borboleta.
Despertado pelo ruído provocado por Waldomiro Diniz, voltou a dormir depois das explicações sussurradas por José Dirceu. Lula não ouviu o governador de Goiás, Marconi Perillo, assombrado com a desenvoltura dos trambiqueiros aliados que tentavam comprar mais deputados. Não quis ouvir a mesma denúncia repetida por Roberto Jefferson. Não enxergou a expansão do pântano. Não viu as marcas de lama nos tapetes do Planalto.
Num prostíbulo de antigamente, a figura protetora desceria da parede para botar ordem na casa. Num Brasil em decomposição moral, o presidente só quebra o silêncio de São Jorge de bordel para berrar improvisos insensatos. Em seguida, volta ao retrato.
Passados sete anos, o São Jorge de São Bernardo faz de conta que nem sabe direito o que se passa no Supremo Tribunal Federal. Jura que, em vez de acompanhar o resgate da roubalheira de verdade, prefere gastar o cérebro baldio seguindo as bandalheiras inventadas pela novela das nove. A fila dos condenados aumenta, mas Lula continua fingindo que nada viu, nada ouviu e de nada soube. Marcos Valério começou a abrir a medonha caixa preta.
Pela primeira vez, como registra o comentário de 1 minuto para o site de VEJA, uma alta patente da quadrilha confirmou que falta alguém no banco dos réus do Supremo. Nem assim o chefe da seita se anima a falar em mensalão. Acha que vai ficar até o fim dos tempos pendurado no retrato na parede.
Não percebeu que a farra na zona foi longe demais. Nem desconfia que a casa pode cair a qualquer momento.
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