Não se discute que a grande vedete dessas eleições é a denominada Lei da Ficha Limpa. Aliás, ela pretendeu atender aos anseios de mais de 1,3 milhões de assinaturas de eleitores brasileiros, o que representa mais de 1% do eleitorado nacional. ...
Por outro lado, atendeu ainda à imprensa (tanto a chamada “nanica” quanto a grande imprensa) que a “glamourizou” ao ponto de acreditar que ela tivesse, realmente, o condão de impedir que criminosos contumazes obtivessem condições de elegibilidade.
Também a maioria dos juristas da nação (mesmo os especializados em Direito Eleitoral) proclamaram a sua crença na eficácia da novel legislação, ainda que eventualmente demonstrassem certa indignação por conta de eventuais violações ao principio de ampla defesa e do contraditório.
Nada mais ingênuo, no entanto. Como ingênua, até, foi a indignação do ilustre ministro Carlos Ayres Britto, atual Presidente do STF, quando, acreditando nessa Lei, durante o debate do julgamento da Lei da Ficha Limpa indagou se “uma pessoa que desfila pela passarela quase inteira do Código Penal, ou da Lei de Improbidade Administrativa, pode se apresentar como candidato?”
Na verdade o Congresso Nacional nada mais fez do que dar um “zignal” em todos que acrediditavam na seriedade e sinceridade da citada lei. Se bem examinado, por via de um processo hermenêutico adequado, ver-se-á que mesmo os homicidas, os latrocidas, os estupradores, os ladrões, ainda que com condenação mantida pelos Tribunais, continuam com a possibilidade de se candidatarem a qualquer cargo eletivo.Como se pode observar, a interpretação comum de que esses estariam inelegíveis, decorre da má avaliação e interpretação equivocada do preceito legislativo contido na alinea “e” do art 1º. da LC 135/10.
Senão, vejamos. O preceito aludido expressa, exatamente, que estariam inelegíveis:
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
Tendo em vista que não se pode interpretar preceito que restringe um direito inerente à cidadania (como é o de se apresentar candidato), de forma elástica, é de se buscar, nesta hermenêutica, uma interpretação estrita: é o que se contém no preceito e nada mais.
É evidente, por conseguinte, que há, no preceito invocado (alinea “e” do art 1º. da LC 135/10) um trato duplo da matéria, no tocante à decisão condenatória que levaria à inelegibilidade ... e sua incidência depende do juízo prolator da decisão originariamente proferida. Significa dizer que a premissa básica para buscar-se o sentido e o objetivo da norma, seria a necessária distinção entre a decisão condenatória proferida por juízo singular e a decisão condenatória prolatada (ou proferida) por juízo colegiado - para dispensar-se, quanto a este último, o trânsito em julgado.
A decisão condenatória, portanto, prolatada por órgão judicial singular, ou de primeiro grau, remete, obrigatoriamente, à necessidade de seu crivo pelo Tribunal ao qual cabe a reapreciação do julgado, em virtude de sua função constitucional de órgão revisor.
Já a referência à decisão condenatória proferida por órgão colegiado direciona, necessariamente, a compreensão de acórdão proferido em ação penal originária, ou seja, a uma condenação obtida diretamente pelo Tribunal, não em razão de sua função revisora, mas sim de sua competência originária de julgamento, sem que tenha havido anterior julgamento por qualquer instância antecedente.
Pontua-se, assim, que a única interpretação plausível para o citado dispositivo da LC, é a de que somente existem duas formas de aplicação do estatuído na alínea “e” do Inciso I, do Art. 1º. da Lei Complementar 64/90, quais sejam:
a) Os condenados em processos iniciados no juízo singular, somente não teriam assegurada a sua condição de elegibilidade após o TRÂNSITO EM JULGADO da decisão condenatória de primeiro grau; e
b) Os condenados em processos originariamente iniciados em órgão judicial colegiado, já estariam inelegíveis desde a condenação na aludida AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA, não necessitando, portanto, do TRÂNSITO EM JULGADO, para a sua eficácia.
E esse entendimento é facilmente obtido da própria redação da alínea “e” em comento. Ora, ao estabelecer que estariam inelegíveis “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, a lei criou uma duplicidade de situações. A primeira, que se refere aos que forem condenados em “decisum” de primeiro grau (cuja inelegibilidade somente ocorreria somente quando do trânsito em julgado desta condenação originária), e a segunda daqueles cuja condenação originária era obtida diretamente do julgamento do Tribunal em ação penal originária (caso de prefeitos, deputados estaduais ... e outros detentores de foro privilegiado).
E esta é a única interpretação possível, diante da dualidade de situações previstas na lei. “condenados em decisão transitada em julgado, ou proferida por orgão colegiado”. Afinal, é elementar que as conjunções disjuntivas exprimem exclusão ou alternativa.
Como se verifica, o preceito legal é alternativo ou disjuntivo, tanto que a lei se utiliza da partícula “OU” para definir as duas situações distintas e excludentes entre si. O que significa dizer que a lei pretendeu estabelecer, exatamente, o seguinte: “os condenados na primeira instância somente estariam inelegíveis após o trânsito em julgado, e os que fossem já condenados primevamente por órgão colegiado, já teriam sua inelegibilidade tracejada a partir da própria condenação”.
É óbvio que esta é a interpretação mais consentânea e adequada, porquanto não se pode entender que a lei seja antinômica e contraditória dentro do contexto de um mesmo preceito legal. D’outro lado não se pode admitir que a lei contenha palavras inúteis. Ora, como se pode admitir que a lei fale em “trânsito em julgado” e ao mesmo tempo mencione “decisão proferida por órgão colegiado sem trânsito em julgado” ?. Se a lei pretendesse tornar inelegível quem já tivesse condenação mantida por órgão colegiado, teria mencionado a expressão “trânsito em julgado” em sua parte inicial? Então a expressão “trânsito em julgado” seria preceito inútil contido na lei? Então teriamos “palavras inúteis” na Lei?
Se realmente a lei pretendesse inabilitar o que tivesse sua condenação mantida por Tribunal, iria consignar “trânsito em julgado” quando se referiu à condenação inicial? Então qual a utilidade desta expressão “trânsito em julgado”? NENHUMA ? ... Obviamente que não.
A entender-se que uma mesma condenação ora necessite de “trânsito em julgado” e ao mesmo tempo prescinda ou dispense o “trânsito em julgado” então estariamos diante de uma aporia e de uma contradição dialógica inexpugnável. É o mesmo que admitir-se que o “vivo esteja morto” e o “morto esteja vivo”, ao mesmo tempo.
Seria admissível essa alteridade terminológica na Lei, e, pior ... num mesmo preceito legal? ... Não! Entendemos que não, até porque se assim o admitissemos, estaríamos admitindo a possibilidade de presenciarmos o “mal vir de braços e abraços com o bem num romance astral”, para parodiar o nosso saudoso Raul Seixas em sua famosa e melódica canção “O Trem das sete”.
E, porquanto inadmite-se a possibilidade desta absurda “contradictio in terminis” na disposição legal em comento, é que se busca resolver esta aporia através de uma possibilidade interpretativa que seja mais consentânea com a efetiva hermenêutica do texto legislado. E esta possibilidade perpassa pelo exame do texto dentro de sua efetiva conformação dialética.
O que a lei pretende dizer com “condenados em decisão transitada em julgado, ou proferida por orgão colegiado”, finalmente? A única hermeneutica plausível é, exatamente, a de que a lei quer dizer, no preceito inicial, ou, seja, na parte inicial de seu preceito (condenados em decisão transitada em julgado) que somente estariam inelegiveis aqueles que, condenados em decisão de juízo singular, tivessem sido atingidos pela pecaminosa “pecha” jurídica do “trânsito em julgado” desta decisão condenatória. Já a segunda parte do preceito (ou proferida por orgão colegiado), quer significar, exatamente, aqueles que tiveram sua condenação diretamente lançadas por um Tribunal judicial, em virtude de decisão tomada em ação penal originária.
Essa possibilidade interpretativa ainda mais se avulta se examinarmos detidamente o preceito legal. Como se constata, a lei menciona: condenados em decisão transitada em julgado, ou proferida por orgão colegiado. Ora o que significa “proferida”? Seria o mesmo que “mantida”?
Como se sabe o tribunal atua de duas formas no âmbito de suas funções constitucionais: ora como orgão revisor (em sua competência recursal) ou como orgão julgador (em sua competência jurisdicional originária). Na primeira, enquanto órgão revisor, ele simplesmente dá ou nega provimento aos recursos, ou seja mantém ou reforma as decisões da primeira instância (competência derivada). Na segunda face de sua atuação, ele já atua como órgão julgador de primeiro grau, dada a sua competência originária para o julgamento dos beneficiários de privilégios de foro especial. E, neste caso, ele profere decisões iniciais de condenação ou absolvição, tal qual o faz o juiz de primeira instância.
Destarte, e fixados esses paradigmas atuacionais, poderíamos dizer que com relação às condenações dos juizes de primeiro grau, o Tribunal apenas mantém ou reforma aquelas decisões condenatórias. No entanto, em relação aos processos de sua competência originária, o Tribunal profere condenação ou absolvição. Assim, e já que proferir tem significado diferente do vocábulo manter, tem-se como inarredável a percepção (aliás bastante elementar), de que se a lei pretendesse dizer que estaria inelegível aquele que teve seu recurso improvido pelo Tribunal em face de ter mantido a decisão do juízo “a quo”, a lei não teria utilizado o termo “proferida”, mas, sim, “mantida”. E, se a lei falou “proferida” é porque quis estabelecer, exatamente, que se referia a decisão tomada colegiadamente, em decisão colhida no exercício de sua atividade jurisdicional penal originária e não no âmbito de sua competência derivada.
Demais disso, é imperioso salientar que CONDENAÇÃO PROFERIDA é noção DIFERENTE DE CONDENAÇÃO MANTIDA. Condenação proferida é decisão originária e inicial. Decisão condenatória mantida é aquela que presupõe necessariamente uma condenação originária até porque só se mantém condenação que já foi anteriormente proferida. Portanto, é decisão derivada e ulterior.
Seguindo a mesma trilha hermenêutica é de ser observado que quando a lei (al. “a” do art 1º. da LC. 135/10) menciona “proferida por orgão colegiado” a aludida preceituação legal pretendeu, exatamente, estabelecer que a causa de inelegibilidade é sem dúvidas, a condenação obtida originariamente no Tribunal e não aquela que resulta da manutenção do decidido na instância de piso. Isto porque se examinarmos o preceito numa dimensão lógica - e até mesmo teleológica -, fica evidente que a terminologia “proferida” está correlacionada com o termo “condenação” e não com o termo “decisão”.
Senão, vejamos o texto legal: “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado”. Ora, nada mais evidente de que quando a lei fala em “proferida por órgão judicial colegiado”, quer especificamente estabelecer: “os que forem condenados, em decisão proferida por órgão judicial colegiado” e não os que tiverem “mantida” a “condenação proferida por outro órgão” jurisdicional de calibre inferior.
Qualquer outra interpretação desafia o bom senso ou a lógica do razoável (logos de lo razonable) de que nos falava Recaséns Siches. Se assim não fosse, a lei diria expressamente: “os que forem condenados e cuja decisão seja mantida por órgão colegiado” ou ainda, (para os casos em que a decisão viesse a transitar em julgado por falta de recurso da sentença do juizo de primeiro grau): “os que forem condenados com trânsito em julgado em única instância ou cuja decisão seja mantida por órgão colegiado”
Finalmente, é de se concluir que se a lei assim não estabeleceu e prescreveu que a inelegibilidade se daria em face de decisão condenatória PROFERIDA por órgão colegiado, então a única resposta possível (ou a única resposta correta de que nos falava Ronald Dworkin, em sua obra “Levando os Direitos à Sério”), é a de que a mencionada disposição legislativa quis exatamente vincular este caso de inelegibilidade àquela situaçâo em que o candidato fosse condenado originariamente por um Tribunal Judicial (TJ’s Estaduais – TRF’s - STM, STJ, STF ) nos casos de sua competência julgadora originária.
Portanto, a conclusão a que se chega é a de que o Congresso Nacional enganou a Nação, editando uma Lei que, aparentemente, atendia às expectativas dos milhões de brasileiros signatários da proposta de lei de iniciativa popular, mas, na verdade, construiu um belo engodo legislativo que não há “salto triplo carpado hermenêutico”, (para se utilizar, mais uma vez, de outra expressão do Ministro Carlos Ayres Britto), que possa sustentar a idéia de inelegibilidade, em casos que tais.
José Orlando Rocha de Carvalho
Professor Assistente de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado da Bahia (UNEB – Salvador). Ex-professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (BA). Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Procurador Geral do Município de Camaçari. Autor dos livros: Ação Declaratória (Forense); Teoria dos Pressupostos e Requisitos Processuais (Lumen Juris) e Alimentos e Coisa Julgada (Oliveira Mendes).
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