Menalton Braff
Ex-professor, é contista, romancista (com 18 obras publicadas) e cronista.
Volte aqui, ela me dizia apontando com o lápis uma passagem na partitura que não tinha saído boa. Eu voltava com a paciência que é permitido exigir de uma criança, enquanto ela suspirava. Muitas vezes a surpreendia com os olhos parados na barra do infinito e suspirando ruidosamente. Nestes momentos, a picardia infantil inventava brincadeiras, como tocar alguma coisa diferente do que mandava o Método. Às vezes ela percebia a brincadeira e suspirando exigia que voltássemos ao exercício. Às vezes, raras vezes, pois quase sempre continuava com os olhos parados em uma lembrança, uma preocupação que eu não poderia imaginar qual fosse.
Sem conhecimento da vida, eu chegava em casa pedindo para trocar de professora, porque Dona Carminha não parava de gemer. Naquele tempo eu não sabia ainda o que é suspiro, coisa que só mais tarde aprendi, como se diz, a ferro e fogo e na própria carne.
Hoje, desconfiado de que as palavras andaram me escondendo suas entranhas por muito tempo, fui atrás do Michaelis. E lá encontrei, para “suspiro”, entre outras acepções: 1) Pequeno orifício para extração de um líquido em pequena quantidade. 2) Pequeno bolo com clara de ovo batida, açúcar e amêndoas ou nozes moídas. 3) Respiradouro. 4) Respiração forte e mais prolongada que a ordinária, provocada por alguma paixão, como amor, saudade, tristeza etc., e entrecortada com estremecimento.
Claro, era isso mesmo. Principalmente entrecortada com estremecimento.
Não troquei de professora nos três anos seguintes. Pouco aprendi de piano e muito menos do amor, pois naquele tempo ainda achava que suspiro e gemido eram a mesma coisa. Ainda acho, mas já percebo diferentes razões para gemidos e, quanto aos suspiros, já sei que são invariavelmente o resultado de alguma opressão do peito, alguma dor difusa, não localizada.
Uma tarde de sol preguiçoso e tímido, a lição foi interrompida pelo choro sacudido de Dona Carminha. Voltei para casa assustado. Coisa misteriosa, aquela, um adulto chorando. Minha professora não devia ter passado dos dezoito anos, mas só não achava que fosse uma velha porque não tinha cabelos brancos. Voltei assustado e sem ter dado a lição do dia. No jantar, relatei com detalhes (o lenço, a baba, a mancha de umidade na blusa) a cena a que assistira à tarde. Me pareceu que ficaram todos consternados e condoídos, repetindo: “Coitada de Dona Carminha, abandonada pelo noivo.”
Pouco tempo depois, acho que numa tarde de sol tão preguiçoso e tímido quanto a tarde em que ela, em vez de suspirar, resolveu chorar, recebeu-me com muita alegria e disse-me entre sorrisos que era nossa última aula. Ela estava de partida. Não entendi muito bem o que se passava, mas fiquei, por obra de um instinto que toda criança tem, muito contente. Não teria mais de aturar seus gemidos.
Não faz muitos anos, tive notícias de Dona Carminha por intermédio de um primo seu que encontrei por acaso em um Simpósio. Foi morar no Rio de Janeiro, teve três filhos e amou o marido até o último dia de sua vida. Fiquei contente, com a notícia, pois já diferencio suspiros de gemidos, e aquele malquerer infantil sempre me doeu um pouco pela vida a fora. E o primeiro noivo?, perguntei. Ninguém mais soube de seu destino.
Lá pelo meio do mês passado, mobilizaram-se todos os redatores do país para falar de namorados e de amor. Principalmente em propagandas comerciais. Numa delas tropecei mais uma vez com a idéia da eternidade do primeiro amor. Então me lembrei de Dona Carminha.
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