sábado, 23 de junho de 2012

EXCLUSIVO para “VEJA São Paulo”: o dr. Adib Jatene, gênio da medicina, conta como diagnosticou o próprio infarto


Ricardo Setti


Jatene em sua sala no HCor: "Já estava cansado de descansar" (Foto: Mario Rodrigues)
Jatene em sua sala no HCor: "Já estava cansado de descansar" (Foto: Mario Rodrigues)
Amigos, trago para os leitores do blog matéria muito interessante deDaniel Bergamasco, com colaboração de Cláudia Jordão, publicada na revista VEJA São Paulo, que, junto com VEJA, circula na capital paulista e nas cidades situadas num raio de 100 quilômetros da cidade.
Não está, portanto, ao alcance de leitores do restante do Estado de São Paulo e dos demais Estados.
É um depoimento exclusivo para a revista do grande cardiologista e ex-ministro da Saúde Adib Jatene sobre o infarto que ele sofreu, diagnosticou — e ao qual sobreviveu muito bem, aos 83 anos. Vale a pena conferir:

“DIAGNOSTIQUEI MEU PRÓPRIO INFARTO”
Há pouco mais de três semanas, o cardiologista Adib Jatene acordou com fortes dores no peito, pediu um eletrocardiograma e logo percebeu que passava pelo mesmo problema já vivido por milhares de seus pacientes. De volta à ativa, ele recebeu VEJA SÃO PAULO para relatar o episódio, do qual se recupera bem

Com as mãos firmes de quem continua a realizar eventuais cirurgias, o cardiologista Adib Jatene segurava uma folha de papel sulfite quando recebeu a reportagem no dia 5 passado, um dia depois de completar 83 anos. “Estou redigindo um artigo para enviar aos jornais, sobre a falta de leitos em hospitais na cidade”, explicou ele, mostrando o texto que rascunhava a mão.
Era a primeira vez em que voltava a sua sala, no Hospital do Coração (HCor), do qual é diretor-geral, desde que sofreu um infarto, duas semanas antes, solucionado após um cateterismo (procedimento não cirúrgico no qual um tubo flexível é introduzido em vaso sanguíneo para checar se há entupimento e saná-lo). “Estou me recuperando muito bem”, apressou-se em dizer o paciente de histórico favorável, que não fuma, controla bem o peso (83 quilos em 1,85 metro de altura) e fez atividade física a vida toda.
Gênio da medicina brasileira, com feitos que incluem a primeira cirurgia de ponte de safena do país e uma série de inovações, ele diz que ficou “muito tranquilo” durante todo o ocorrido, conforme narra a seguir.
“Já sabia que precisava passar por cateterismo e, eventualmente, colocar um stent. Quatro meses atrás, exames de rotina detectaram problemas em uma coronária. E eu vinha adiando, não por desleixo, mas porque tinha compromissos, congresso, conferência. Até que fui surpreen­dido naquela quarta-feira (23 de maio). O dia anterior havia sido normal: atendi em meu consultório no HCor, fui ao Instituto Dante Pazzanese mexer com o ventrículo artificial que estamos desenvolvendo lá, jantei em casa com minha mulher, Aurice.
Com a mulher, a nutricionista Aurice: ref'ugio na fazenda
Com a mulher, a nutricionista Aurice: refúgio na fazenda
Acordei às 6h30 sentindo uma dor forte no peito, mas achei que era algo muscular. Agi com normalidade. Tomei banho, me sentei à mesa, bebi café com leite, comi pão com manteiga, geleia, queijo… Não comentei nada com Aurice, para ela não ficar assustada. Às 8 horas, chamei o motorista, contratado depois que fiz 80 anos de idade, por insistência dos filhos, que acham necessário eu ter esse tipo de conforto que nunca busquei na vida. Saí de casa (nos Jardins) direto para o HCor.
Como a sensação permanece e vai se intensificando, aumentou a suspeita de que poderia ser sério.
Na minha sala, no hospital, mandei chamar a moça responsável por fazer eletrocardiograma em meus pacientes. Eu mesmo li o resultado. Aparecia o supradesnivelamento de segmento ST, uma situação clássica de infarto. A artéria descendente anterior estava obstruída na porção média. Peguei o telefone e não tive dúvida: liguei para o Dante Pazzanese e falei com o médico José Eduardo Sousa. Trabalhamos juntos pela primeira vez em 1959 e hoje ele faz parte da minha equipe no HCor.
É um intervencionista altamente reconhecido, foi o homem que utilizoustent pela primeira vez. Com um camarada desse ao lado, era a escolha óbvia. Falei: ‘Preciso de você. Estou infartando e teremos de fazer o cateterismo que deveríamos ter realizado semanas atrás [risos].’ Em seguida, liguei para minha mulher para avisá-la. Ela tem muito escrúpulo em me cuidar, mas se manteve calma, na medida do possível. Fui me dirigindo, então, à sala de hemodinâmica, onde eu seria tratado.
No Clube Pinheiros, nos anos 80: atividades físicas por toda a vida
No Clube Pinheiros, nos anos 80: atividades físicas por toda a vida
Quiseram me levar de maca, mas eu disse: `Não quero. Prefiro ir andando’. Deitei sobre a mesa, tranquilo, enquanto preparavam tudo para o procedimento. Sou católico, costumo rezar, mas não rezei. Eu sabia o que deveria ser feito, como seria conduzido e o resultado que iria ter. Lido com fatos, não com fantasias. Não fico imaginando coisas. Estamos cansados de ver doentes que chegam aqui infartando. É a nossa rotina.
A intervenção era a urgência naquele momento e eu nunca discuto problemas, apenas soluções. Quem me conhece sabe que sou assim desde sempre. Quando surgiram no mundo as válvulas artificiais e nós não tínhamos condições de importá-las para o Brasil, eu só pensava em dar um jeito: `Como é que eu vou fazer isso aqui?’. E, em 1964, as montamos, com o material disponível no país. Em 1958, para fazer o coração-pulmão artificial do Hospital das Clínicas, fui a uma fábrica pedir para adaptarem um motor e depois comprei peças na Rua Santa Ifigênia, que na época já era um polo eletroeletrônico. Sou otimista.
Quando o Eduardo chegou ao hospital, estava tudo pronto para o procedimento. Queria dispensar a sedação, para assistir ao trabalho, mas não me deixaram. [José Eduardo Sousa explica: "Justamente por ele conhecer as etapas da técnica, poderia ficar ansioso e ter aumento de pressão arterial, o que não seria conveniente".] Confio no médico e no hospital. No HCor, o número de mortalidade nesses casos é de 1,8%, enquanto nos hospitais menos diferenciados, onde o diagnóstico demora, é de 20% a 30% [cerca de 10.000 pessoas morrem do mal anualmente na cidade].
A obstrução da coronária era total, de 100%, mas posso dizer que tive um pequeno infarto, que acabou antes de ficar grande. Os filhos ficaram sabendo pelas pessoas do hospital e estavam ali. [A exceção foi Iara, a única dos quatro a não seguir a medicina, a quem os irmãos decidiram avisar só depois que a intervenção tivesse acabado, para evitar preocupações. Ela conta: "Mas o namorado da minha filha ouviu a notícia no rádio, ela me ligou chorando e, obviamente, fiquei desesperada. Quando liguei para saber notícias, passaram o celular para o meu pai e ouvi dele que tinha dado certo."] Passei uma semana na Unidade Coronariana e outra em casa. Voltar à ativa está sendo ótimo, não gosto de períodos sem trabalhar. Felizmente, tudo corre muito bem na recuperação. É um grande erro achar que o infartado precisa de repouso por muito tempo. A lesão se cicatriza em quinze dias, e já posso voltar a fazer exercícios.
Para que o cateterismo tenha o máximo de eficiência, calculamos que o tempo porta/cateter (da entrada no hospital ao início do procedimento) deve ser menor que noventa minutos. No meu caso, foi menor que trinta. Por isso, não tive medo de morrer. Nunca tenho, aliás, por essa característica que citei: concentrar-me nas soluções.
Na equipe de remo da USP (no alto): treinamento no Rio Tietê
Na equipe de remo da USP (sentado na parte traseira do barco): treinamento no Rio Tietê
Uma vez, quando estudante da USP, treinava para uma competição internacional de remo em Porto Alegre. O cais do Rio Guaíba estava sendo construído, e um navio rebocador veio em cima do nosso barco. Quando percebi que ele não iria se desviar, eu me preparei, agarrei os pneus amarrados no casco e fui pendurado até a plataforma (na época, não sabia nadar). Só quando me vi a salvo é que pensei nos riscos.
Todas as pessoas correm algum perigo na vida, isso é normal. Meu infarto, aliás, só não foi mais grave porque sempre pratiquei muito esporte e, por isso, tenho o que se chama de circulação colateral (desenvolvimento de vasos sanguíneos que servem de alternativa para o fluxo quando outros estão obstruídos). Hoje, aos 83 anos, faço caminhada, sou um bom paciente. Nunca passei de 90 quilos. A única coisa que me é desfavorável é ter ficado diabético de dez anos para cá (em decorrência de uma pancreatite). Tomo a medicação corretamente, não sou hipertenso, não fumo e não sou irritadiço, apesar de emotivo. Fiz tudo ao meu alcance, com a exceção dessa colocação de stent, que deveria ter sido realizada antes. Evidentemente, nunca se deve adiar o tratamento dessa forma devido a compromissos e correr o risco que eu corri.”

Cirurgião, inventor, ministro…
O jeitão incansável de quem está sempre procurando problemas para resolver já chamava atenção nos tempos de juventude. “Cruzávamos de carro o estado de São Paulo, íamos ao Rio de Janeiro e a Minas para fazer cirurgias em hospitais que muitas vezes não tinham recursos”, recorda o cirurgião cardiovascular Luiz Carlos Bento de Souza, hoje diretor clínico do HCor. Quem conhece Jatene de perto, portanto, sabia que a fase de repouso não duraria muito tempo. “Já estava cansado de descansar”, diz ele, após uma semana internado na Unidade Coronariana do HCor e outra em casa.
É uma frase coerente com o histórico do médico que, com mais de 20.000 operações no currículo, tem trabalhado há meses na elaboração de um novo tipo de válvula para auxiliar o bombeamento de sangue nos ventrículos. Se funcionar, poderá ser uma das muitas criações de sua carreira. Entre outros marcos, ele desenvolveu o primeiro coração-pulmão artificial do Hospital das Clínicas, nos anos 50, um modelo de oxigenador do plasma, na década de 60, e inventou uma técnica de correção de artérias transpostas em bebês, que ficou conhecida mundialmente como Cirurgia de Jatene.
Nascido em Xapuri, no Acre, filho de um seringueiro e uma dona de armarinho, foi criado em Uberaba, no Triângulo Mineiro. Chegou a São Paulo para estudar na USP, onde conheceu seu grande mentor, Euryclides Zerbini (1912-1993), que realizou em 1968 o primeiro transplante de coração no Brasil. Com diversos convites para ocupar cargos políticos, aceitou três: tornou-se secretário estadual de Saúde, quando o governador era Paulo Maluf, e ministro da mesma área duas vezes, nas gestões Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso.
Foi nos anos FHC que emplacou a ideia da contribuição provisória sobre movimentação financeira (CPMF), para aumentar a arrecadação na saúde pública e, de quebra, coibir a sonegação. Seus múltiplos interesses não param por aí. Vai mensalmente a sua fazenda nos arredores de Catanduva (a 390 quilômetros da capital) para conferir as plantações e a criação de gado. Dono de uma coleção particular de quadros que inclui artistas como Di Cavalcanti, Alfredo Volpi e Tarsila do Amaral, preside o conselho deliberativo do Museu de Arte de São Paulo (Masp). “Estou sempre procurando mais trabalho.”

Nas mãos de um amigo do peito
José Eduardo Sousa: correria para tratar o infarto de Jatene (Foto: Mario Rodrigues)
José Eduardo Sousa: correria para tratar o infarto de Jatene (Foto: Mario Rodrigues)
Quando recebeu o telefonema de Adib Jatene avisando do infarto, José Eduardo Sousa se preparava para fazer um cateterismo em outro paciente, em procedimento eletivo (ou seja, sem urgência, que poderia ser remarcado), no Instituto Dante Pazzanese, na região do Ibirapuera. Mandou cancelar o compromisso, pegou o carro e, “em uns dez minutos”, havia chegado ao HCor, no Paraíso, onde trabalha no mesmo andar que Jatene.
Por trás da correria, além do dever médico, estava uma longa amizade, que começou em 1959, quando Sousa, hoje com 78 anos, era residente do Dante, e o colega trabalhava como cirurgião. Atuou na equipe liderada por Jatene na primeira cirurgia de ponte de safena do Brasil. Depois, recebeu o incentivo do colega em suas próprias realizações: fez um procedimento pioneiro com stent no mundo, em 1978, e repetiu o feito na versão farmacológica da estrutura (dotada de medicamento que previne novas obstruções), em 1999.
Quando viu o velho conhecido na mesa de cateterismo, porém, esse histórico sumiu de sua cabeça. “Ali, era um paciente qualquer. Eu me afasto totalmente da pessoa”, diz Sousa, que fez o mesmo procedimento na mãe e no sogro.

Sobrenome a serviço da medicina
Os médicos Ieda, Marcelo e Fábio e a arquiteta Iara (da esq. para a dir.): filhos com uma carreira de brilho próprio (Foto: Mario Rodrigues)
Os médicos Ieda, Marcelo e Fábio e a arquiteta Iara (da esq. para a dir.): filhos com uma carreira de brilho próprio (Foto: Mario Rodrigues)
Quando criança, Iara Jatene andava no carro do pai torcendo para não encontrar algum acidente de trânsito pela frente. “Ele sempre corria para socorrer a pessoa e eu morro de medo de ver alguém passando mal”, recorda a arquiteta de 54 anos, formada pela USP, única dos quatro filhos de Adib a não seguir a profissão do pai. Com sobrenome de peso, todos construíram uma carreira de brilho próprio.
Fabio, 57, comanda o Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas e foi eleito (empatado com Sergio Almeida de Oliveira) o melhor cirurgião cardíaco da cidade em edição de VEJA SÃO PAULO de 2007, na qual votaram 110 médicos. Graduou-se pela Faculdade de Medicina da Fundação Universitária do ABC, instituição particular de Santo André, assim como a irmã Ieda, 56, hoje cardiologista pediátrica.
Marcelo, o caçula, com 50 anos, também cuida de corações infantis, mas na cirurgia. “Nunca houve pressão para seguirmos na área, mas meu pai não esconde o orgulho dessa escolha”, reconhece ele, que fez o curso na Unifesp. Como Adib, nenhum deles procurou continuar os estudos no exterior. “Não achamos necessário, pois temos ótimas escolas por aqui”, diz Marcelo. Três dos dez netos do patriarca são estudantes de medicina, em diferentes faculdades da cidade (na federal Unifesp e nas particulares Unip e Uninove). São todos incentivados pela avó, a nutricionista Aurice, de 83 anos, que, reservada, preferiu não dar entrevista. “Ela sempre apoiou muito meu pai, mas fica uma fera quando ele fura as gravatas ao ir ao torno do Dante Pazzanese lapidar pessoalmente peças para seus experimentos”, conta Ieda.

O estilo Jatene…
…Segundo renomados colegas de profissão

Dr. Aron Andrade, engenheiro biomédico (Foto: Cida Souza)
Dr. Aron Andrade, engenheiro biomédico (Foto: Cida Souza)
“Convivemos atualmente no Dante Pazzanese. Para ele, não há obstáculo que não possa ser ultrapassado. Adib sempre diz: `Se alguém já fez, é possível fazer. Se ninguém nunca fez, temos de encontrar um meio’. Detesta corpo mole. Se demoram a fazer o que pediu, deixa essa pessoa de lado e pede a outro. Se o profissional vai ao banco no meio do expediente, ele fica chateado.”
Aron Andrade, engenheiro biomédico


Roberto Kalil Filho, cardiologista (Foto: Divulgação)
Roberto Kalil Filho, cardiologista (Foto: Mario Rodrigues)
“Dizem que faço jornadas muito longas, e era sempre bom escutar do professor Adib: `Trabalho não mata. O que mata é raiva’. Falar com ele é animador. No ano passado, quando estudava para o concurso de professor titular da cardiologia da USP, às vezes eu ficava um pouco cansado e deprimido, mas era só ser recebido em sua sala e ouvir ideias para a saúde pública que saía extremamente motivado.”
Roberto Kalil Filho, cardiologista


Sergio Almeida de Oliveira (à esq.), cirurgião cardíaco (Foto: Mario Rodrigues)
Sergio Almeida de Oliveira (à esq.), cirurgião cardíaco (Foto: Mario Rodrigues)
“O doutor Adib quase nunca tira férias e é uma pessoa muito séria, apesar de cordial. Rigoroso com horários, não tolera atrasos, mas sem crueldade. Quando sofreu o infarto, que a todos surpreendeu, o fato de ter corrido para o hospital fez toda a diferença. A maioria dos médicos é mais displicente com a própria saúde.”
Sergio Almeida de Oliveira, cirurgião cardíaco

Nabil Ghorayeb, cardiologista (Foto: Vivi Zanatta)
Nabil Ghorayeb, cardiologista (Foto: Vivi Zanatta)
“Acompanhei muitas cirurgias feitas por ele nos anos 70, quando eu era residente. Em uma delas, na qual o paciente teve infarto gravíssimo, percebeu que precisaria de um sistema de irrigação extra para as coronárias, mas não havia instrumento para fazer essa função. Apelou para o estilo heroico: improvisou cortando um tubo de soro e em instantes o mecanismo estava funcionando.”
Nabil Ghorayeb, cardiologista


Drauzio Varella, oncologista (Foto: Divulgação)
Drauzio Varella, oncologista (Foto: Divulgação)
“É uma unanimidade e sempre se cercou de gente competente. Só ouvi críticas sobre a atuação em áreas administrativas, mas não sei se ele teria condições de proceder de modo diferente. Quando a cardiologia começou a se estabelecer no Brasil, o Incor (liderado por ele) se destacou. Muitos políticos se tratavam lá. Ao mesmo tempo, o hospital precisava de verba. Isso criava uma relação complicada, já que o hospital é público.”
Drauzio Varella, oncologista

Nenhum comentário:

Postar um comentário