3/06/2012
às 13:00
Ricardo Setti
(Entrevista a Maria Laura Neves e Patrícia Zaidan publicada na revistaClaudia, da Editora Abril)
“E AINDA DIZEM QUE EU SOU SOCIALITE?”
Peça-chave no primeiro impeachment da história do Brasil, Thereza Collor tem se aventurado pelos desertos do mundo. Vinte anos depois de ajudar a derrubar o presidente Fernando Collor, ela relembra o episódio e o que ele mudou na sua vida
Era 27 de maio de 1992 quando o Brasil conheceu Thereza Collor. Numtailleur xadrez que revelava suas pernas e causou verdadeira comoção. Naquele dia, no Maksoud Plaza Hotel, em São Paulo, a pernambucana criada em Maceió não disse uma só palavra: as atenções tinham que permanecer sobre o marido, Pedro Collor, que exibia a um batalhão de jornalistas o atestado de sua integridade mental.
Ele reiterava que não era preciso ser louco para denunciar o lamaçal de corrupção em que estava metido o presidente Fernando Collor, seu irmão. O episódio vai completar 20 anos. Thereza postou-se feito leoa ao lado de Pedro, que enfrentava uma guerra com o mundo político e o particular. A mãe de Pedro, Leda, para desqualificar as acusações, afirmou em uma carta ao Congresso Nacional que o filho era desequilibrado – além de afastá-lo do comando das empresas de comunicação da família, em Alagoas.
Era só o começo do processo tenso e explosivo que derrubou o presidente, quatro meses depois. Nesta entrevista, Thereza recordou, às vezes com voz embargada, a sensação do dever cumprido, as ameaças de morte, a saída do país com os dois filhos pequenos e com pouco dinheiro: “Eu cortava o cabelo do Pedro, o meu, o das crianças, vivendo de economias”, lembra.
De volta ao Brasil, o marido descobriu um câncer, em novembro de 1994, e deixou Thereza viúva um mês depois. As pessoas nunca se esqueceram dela, como se nota facilmente ao segui-la na Galeria de Arte do Sesi, na avenida Paulista, em São Paulo, onde até este mês de junho mantém a mostra Joias do Deserto, com 2 mil adornos dos séculos XIX e XX.
Para comprá-los, ela percorre tribos da Ásia Central, Arábia, Tibete e Saara. Dorme em cabanas, se lava em bacia, come bolachas. Na exposição, há quem queira abraçá-la, perguntar detalhes do impeachment – o que hoje, aos 49 anos, Thereza tem orgulho de recordar.
Você ainda guarda aquele tailleur xadrez que a tornou famosa?
Está em Maceió, é uma memória. Foi um negócio maluco. Não preparei um guarda-roupa; estava tensa demais para pensar no que vestir. De repente, o tailleur mexeu com o imaginário das pessoas. Falaram das minhas pernas. As revistas de moda disseram que o tecido não era apropriado para a temperatura… para virar um símbolo.
Que emoção você sente ao lembrar que faz parte da história do Brasil?
Fernando era jovem, o primeiro presidente depois da ditadura militar, com uma eleição brilhante. Quem vai contra um presidente assim? Pedro estava completamente só. A família dele, a minha, os políticos, os empresários que tinham negócio com o governo, todos se voltaram contra.
Eu levava uma vida quieta em Alagoas. Mas, quando vi Pedro sendo injustiçado, não me contive: entrei por solidariedade. Até mesmo um dos advogados contratados por Pedro tentou abafar o caso, indo à redação de VEJA para impedir a publicação das denúncias – mas não conseguiu.
O advogado foi ao Maksoud, onde estávamos hospedados, disse que as acusações eram graves demais e aconselhou que as retirasse, porque não havia argumentos para defender Pedro: ele seria preso. Afirmei que, se isso acontecesse, eu iria para a rua, levantar o povo. Como podiam prender um homem que não tinha cometido nenhum crime?
E você faria isso mesmo?
É lógico! Se Pedro fosse preso, ia acabar enfraquecido, no ostracismo. Quem o defenderia? Quem argumentaria por ele? Eu estava junto, não era só uma coadjuvante, um ombro ou ouvido qualquer. E o incentivava a seguir em frente.
Você nunca pensou em desistir?
Era um caminho sem volta. Não podíamos pensar em recuar. Também não tivemos medo de nada. Medo é algo que não passa por mim.
E sofreram ameaças?
Pouco antes das denúncias, o governador do Acre [Edmundo Pinto] tinha sido assassinado num hotel de São Paulo. Quando chegávamos aqui [em São Paulo], o governador Fleury [Luiz Antonio Fleury Filho] colocava um monte de policiais para nos proteger. Ele tinha receio de que algo nos atingisse. Afinal, quantos milhões de interesses estavam em jogo com as declarações de Pedro? E grana, então?
Outra vez, num restaurante, a segurança pediu para irmos embora: havia uma suspeita de ataque. E também recebemos ligações com ameaças em casa, em Maceió. Falavam de nossos filhos.
Por que, depois do impeachment, vocês foram para Miami?
Minha casa vivia cercada de jornalistas. Não tínhamos sossego para nada. Um inferno. O ano que passamos em Miami foi angustiante. Sem trabalho, não sabíamos o que seria da nossa vida. Na volta, tudo continuava bagunçado. O clima estava ruim, as pessoas tinham medo de que Pedro fizesse novas denúncias. Ninguém se aproximava de nós. Parecia que tínhamos lepra [risos].
Como vocês se sustentaram?
Nosso padrão de vida diminuiu bastante. E dona Leda nos ajudou. Era uma mulher muito educada, íntegra, reconhecia que Pedro havia reerguido o patrimônio da família. Dizia que ele lhe dera uma qualidade de vida que nem mesmo o marido [o senador Arnon de Mello, morto em 1983] tinha lhe proporcionado.
Mas ela ficou do lado do presidente Collor e chamou o seu marido de louco. Você a perdoou logo?
Ela sentiu o peso da posição que tomou. De certa forma, se arrependeu. Dona Leda pensava que, como majoritária na empresa, recolocaria o Pedro no comando quando quisesse. Já a Presidência da República, ela não poderia devolver se o filho a perdesse.
Então, pressionada pela família, fez a carta para evitar uma CPI contra Fernando. Foi usada: disseram que o documento seria lido por poucos no Congresso Nacional. Mas vazou ao chegar ao Palácio do Planalto. Alguém de lá mandou por fax para todas as sucursais da imprensa.
O ex-presidente tinha fama de vingativo. Como vocês se protegeram?
Nunca fizemos nada. Foi Deus. E a consciência do Fernando, que sabia que Pedro falava a verdade. Ele não nos prejudicou [perseguindo]. Só mentiu ao dizer que não o deixei ver Pedro no final da vida. Não é verdade. Imagine. É família, é sangue. Não proibi nada.
Como você lidou com o câncer cerebral que vitimou seu marido?
Foi tudo muito rápido. Nós recebemos a notícia de que era incurável, uma metástase de câncer de pele, e ele morreu um mês depois.
O stress teve relação com a doença?
Eu acredito que sim. Ficamos 20 dias em Nova York, no Memorial Hospital, um centro de referência no mundo. O chefe da oncologia disse a Pedro que a pessoa tem maior ou menor propensão ao câncer, e que as descargas de stress muito grandes aceleram o processo. A tensão tinha sido enorme.
Pedro fez reflexões à beira da morte?
Ele foi a pessoa mais forte que eu conheci. Nunca questionou a doença. Sabia que ia morrer, mas não ficou baixo-astral ou fez confissões. Ele tinha a consciência limpa. Não tomou calmante para dormir nenhuma vez. Só estava triste com o rompimento da família. Já eu, não queria acreditar naquela doença dele. Ficava esperando por um milagre. Preparava a comida, passava a sopa na peneira para ficar fininha. Queria deixá-lo forte.
Teve quem dissesse que a doença era um castigo. Não foi assim?
Para mim, não disseram nada. Nunca sofri um só ato de agressividade. Eu andava pelas ruas e até as pessoas pró-Collor vinham me abraçar. Tenho um arquivo gigante com cartas – uma veio da Bolívia – parabenizando, falando que nós mudamos a história do Brasil.
De lá para cá, o país melhorou?
Não amadurecemos politicamente. Não há consciência do coletivo, ninguém respeita o que é público. A gente vê tantos escândalos: políticos tirando dinheiro da saúde, da educação, da boca do povo. Eles compram votos. Ainda hoje existe clientelismo e prática de currais. Eu tenho muita pena do Brasil.
A luta foi em vão? Hoje você faria algo diferente? Escolheria outro caminho?
A imprensa se fortaleceu, ganhou poder. Isso é bom. O apoio dela foi fundamental. Se não estivesse ao nosso lado, a denúncia morreria. Não, eu não mudaria minha posição. Hoje, com maturidade, talvez confiasse menos em algumas pessoas. Lidaria melhor com a imprensa, que também tem outro lado: quando precisa, ela usa você. Se já não precisa mais, descarta, chuta. E, se enxergar que você está ganhando muita força, então ela a queima, sem a menor piedade.
Vinte anos depois, já dá para rever a versão de Pedro de que Fernando a assediou num momento em que seu casamento estava abalado?
Fernando é sedutor com todo mundo. Naquela época, ele era governador e já tentava desestabilizar Pedro, que dirigia a Gazeta de Alagoas, com posição independente e às vezes até crítica à administração.
Isso se estendeu no período da Presidência. Primeiro, tentou tirar o Pedro do comando da empresa. Depois, botou Paulo César [o PC Farias, tesoureiro da campanha de Collor, pivô das denúncias de Pedro, que foi assassinado em 1996] para comprar as ações de Leopoldo [o irmão mais velho do presidente]. E criou o jornal A Tribuna, também com PC, para concorrer com a Gazeta.
Entre as tentativas de derrubar Pedro, insinuou que me assediava. Ele conhecia muito bem o meu marido, sabia que isso o deixaria enciumado, injuriado. E, por causa das denúncias, queria ver o satanás, mas não queria avistar Pedro.
A relação deles sempre foi conflituosa?
Não, ao contrário. Eram muito próximos desde a juventude. Pedro era padrinho do filho mais velho de Fernando, o Arnon. Nosso primeiro filho recebeu o nome do Fernando.
Você tem contato com Collor, hoje senador, e com os outros familiares?
Com Fernando, nenhum. Eu me dou bem com os filhos dele. Quando me encontram, são carinhosos. E convivem com meus filhos. Mas ninguém toca em assunto passado.
Por que você não quis disputar um cargo político depois de ter sido secretária de Turismo de Alagoas?
Fui convidada mil vezes para disputar eleições. Era a única pessoa com rejeição zero no Estado. Mas eu estava muito cansada. Também tinha medo de, com a minha inexperiência, assinar algum documento e me meter em falcatruas.
Fiquei viúva em dezembro e dia 3 de janeiro já tomei posse na Secretaria. Eu fiz um bom trabalho, me neguei ao compadrio e a fazer cabide de emprego. Não aceitei nem uma colunista social que pediu uma vaga ao governador (Divaldo Suruagi). Vesti a camisa e suei.
Usei a mídia nacional, que tinha em torno de mim, para reverter a imagem negativa que os escândalos renderam ao Estado. Deixei dinheiro em caixa, restaurei o Teatro Deodoro, levei lá Bibi Ferreira, Fernanda Montenegro, Hebe Camargo. Depois de tudo, ainda dizem que eu sou só uma socialite?
Você também estava ganhando bons cachês como estrela e modelo…
Por que não? Todo dinheiro extra que vinha era bom. Não sou uma estrela, mas passo credibilidade. Fiz propaganda das Havaianas porque sempre usei. E me recusei a fazer publicidade de uma cerveja porque não combinava comigo.
Ainda mantém vínculos com Alagoas?
Amo a minha terra. Vou todo mês a Maceió. Meu filho Fernando (de 28 anos) mora lá. Meu marido [o empresário Gustavo Halbreich] se apaixonou pelo Estado e até comprou uma fazenda de coqueiros.
O que seus filhos fazem hoje? Que imagem guardaram do pai?
Pedro é um exemplo para eles. Mas sentem que o sobrenome pesa demais. Ao mesmo tempo que abre, também fecha muitas portas.
Victor (25 anos) adora São Paulo, é fotógrafo, gosta de namorar mulheres mais velhas. Foi eleito, não sei por quem, um dos homens mais bem-vestidos do país.
O Fernando está sendo tentado pela política [faz expressão de desgosto]. Trabalha no jornal do meu pai [o usineiro e deputado federal João Lyra]. Eu preferia que ele atuasse em outra coisa. Mas não posso me meter.
Se ele decidir virar político, você abraça a ideia? Vai para a campanha?
Abraço, né? Vou estar ao lado em qualquer momento. É meu filho.
Que tipo de conselho você dá a ele?
Sempre digo que é preciso ter idealismo, uma bandeira, um sonho. Pedro nunca gostou de política, era transparente, chegou a discutir várias vezes com meu pai. A política, aliás, sempre rondou a minha vida e deu muito trabalho, trouxe conflitos.
Me casei aos 18 anos, por desejo próprio, mas o casamento teve uma conotação política. Fernando Collor era prefeito de Maceió, meu sogro era senador e meu pai já tinha pretensões eleitorais. Foram 5 mil convidados, minha família criou um escritório só para cuidar da recepção – não havia infraestrutura na cidade. Tinha políticos e empresários do país inteiro. Os noivos não eram o foco da festa [risos].
As diferenças com seu pai a fizeram forte? Você continua distante dele?
Meu pai é machista, não concordo com ele. Somos opostos e nos vemos pouco. Não me meto na vida dele e ele não se mete na minha. O que eu vivi em casa talvez tenha me feito mais forte, sim. Já sofri muitas adversidades e soube enfrentar todas elas sozinha.
Por que coleciona joias étnicas?
Gosto do exótico. Aos 14 anos, numa viagem ao Irã e ao Egito, comecei a comprar para usar. Quando casei, a mãe do Gustavo me ofereceu as peças que tinha. Adoro colecionar. Quando criança, fazia álbuns de figurinhas. Pesquiso as peças, o valor cultural, a época, o significado. Há povos que não usam alianças, mas braceletes em sinal de união. Guardo uma parte delas na fazenda, outra em São Paulo.
Quando você percorre os desertos pelo mundo, como se instala?
Fico em lugares sem conforto, mas gosto. No Turcomenistão, dormi numa barraca. Não tinha banheiro, eu usava um cercadinho de palha para me lavar numa bacia. Na Ásia Central, não tomam café da manhã: eu levei o meu leite em pó. No deserto, passo dias comendo bolacha, barra de cereal e queijo. Adoro ouvir as pessoas, fotografá-las nas suas aldeias.
Tudo com apoio do marido?
Sempre com apoio dele. Gustavo vai junto algumas vezes. Ou minha mãe [Solange Lyra, que vive na Espanha] me faz companhia.
Gustavo já pediu para esquecer essa história de musa do impeachment?
Nunca. Carrego o nome Collor. Tem sempre alguém, num jantar, que pergunta. Eu conto. Meu marido se orgulha da postura decente e digna que assumi. Sabe que não há como apagar minha história.
Você começou a escrever seu livro?
Tenho vontade, mas preciso andar mais. Não vou falar só do impeachment: me tornaria uma ranzinza. Mas minha vida longa já dá livro. Até pareço uma velhinha.
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