Tratado ora como criminoso comum, ora como incapaz, Chico Picadinho completa 70 anos de idade – 43 deles atrás das grades – e é motivo de queixa contra a Justiça brasileira na OEA
28 de abril de 2012 | 16h 00
Ivan Marsiglia - O Estado de S. Paulo
Há décadas a viagem se repete. Um senhor magro e de gestos ágeis que não denunciam seus 70 anos percorre 130 km de rodovia antes de atravessar o portão de ferro que conduz ao interior do complexo. Ele conhece o procedimento. Diante da funcionária, tira o cinto, os sapatos e passa pelo detector de metais. É conduzido a uma segunda porta, gradeada, que abre e fecha a sua passagem. Um lance de escadas e chega à terceira porta, onde um segundo funcionário fala ao interfone antes de deixá-lo seguir. Só então entra na sala ampla, com uma única mesa e duas cadeiras no centro. Aguarda em silêncio a chegada do outro. Magro e grisalho como ele, entra acompanhado, com as mãos juntas. É a primeira visita em mais de um ano do único amigo que restou a Francisco Costa Rocha – o Franrocha, na caligrafia delicada com que assina suas cartas, ou Chico Picadinho, no apelido que jamais perdeu entre os colegas do presídio de segurança máxima.
Arquivo/AE
Francisco Costa Rocha, conhecido como 'Chico Picadinho' entre os colegas de presídio
A relação entre esses dois homens há muito deixou de ser profissional. Flávio Markman, criminalista paulistano de estatura análoga a seu 1,83 metro, vinha de uma carreira de 66 defesas de júri sem derrota quando conheceu Francisco. Lembra que foi em outra prisão, a Casa de Detenção de São Paulo, quando um recém-chegado o procurou no Sagra, Serviço de Assistência Gratuita, em que Markman oferecia consultoria jurídica aos detentos. Era o mês de agosto de 1966 e Costa Rocha tinha os mesmos 24 anos que o jovem advogado. Havia cometido um crime inominável, que chocou São Paulo. “Doutor”, disse ele, “para médico e advogado não se mente: eu acordei, vi uma mulher morta do meu lado e não sei se a matei.”
Nos interrogatórios que se seguiram, parte da memória voltou ao “esquartejador da Rua Aurora”, como o assassino ficou conhecido inicialmente. Em um depoimento policial que durou dez horas e meia e foi acompanhado ao vivo por repórteres do Canal 9, da Rádio Marconi e do Jornal da Tarde, contou que conheceu a vítima, a suíça Margareth Suida, de 38 anos, em um bar na região central da cidade, por volta das 23h30. Beberam cerveja e batida de amendoim. Foram ao apartamento de Costa Rocha lá pelas 4h da manhã. E, em algum momento, ele a estrangulou com um cinto. “Nessa hora”, diz ele no relato publicado pela imprensa, “eu fiquei desesperado, vendo que aquela mulher representava a minha vida. Por isso, quis destruir aquele corpo.” Usando facas, tesoura e gilete, esquartejou-a com a intenção de esconder as provas do crime. Diante da impossibilidade, fugiu para a casa da mãe, Nancy, no Rio de Janeiro, onde foi preso.
Em pouco tempo na relação entre advogado e cliente, foi possível a Markman perceber que Chico, que até o crime brutal jamais apresentara qualquer sinal de agressividade, tivera uma infância solitária, um pai ausente e uma relação conturbada com a mãe. Mas é evidente também que sua disposição em defendê-lo não advinha apenas daquela sensibilidade aos aspectos passionais que envolvem certos tipos de crime, que tanto fascinavam o célebre jurista italiano Enrico Ferri, autor de A Imputabilidade Humana e a Negação do Livre Arbítrio (1879). Ou à solidariedade para com os decaídos de que falava o mestre do jovem advogado na arte dramática do júri, o criminalista paulista Valdir Troncoso Peres, morto em 2009. “Era, além de tudo, um grande desafio profissional para mim”, conta Markman.
Quando o grande dia chegou, em 13 de março de 1968, seu talento na Primeira Vara Auxiliar – onde ainda hoje está o prédio do 1º Tribunal do Júri, na Praça da Sé – não prevaleceu diante das evidências, da confissão do réu e da experiência do promotor Vitor Afonso Lopes Teixeira. Mas chegou a irritar o adversário: “O advogado de defesa, Flávio, procura desviar a atenção dos jurados, fazendo gestos exagerados, bebendo água com frequência e batendo os copos”, protestou Teixeira, em dado momento, ao juiz. Uma vitória de pirro, ao final, pois a acusação não conseguiu emplacar os 33 anos de condenação que pedia para Chico. Teve que se contentar com 17 anos e 6 meses. O placar entre os jurados: 6 X 1. “Ainda consegui uma absolvição”, orgulha-se Markman. O cliente cumpriria 6 anos em uma colônia penal em Bauru e sairia em liberdade condicional por bom comportamento em 1974.
Chico se casou com uma descendente de russos, teve uma filha, se separou. Voltou à boemia e à bebida. Até que no dia 18 de outubro de 1976 conheceu Ângela de Souza Silva num bar da Galeria 24 de maio. E tudo se repetiria.
Chico levou Ângela para seu apartamento, na Av. Rio Branco, onde a matou e esquartejou. Em seguida correu para a mãe, no Rio. Foi preso. Dessa vez não houve tribunal: o juiz pediu um laudo médico, que declarou o réu incapaz, e sentenciou-o a pena comum de prisão – fato à época permitido pela legislação.
Olhando em retrospecto, parece espantoso que até aquele segundo crime ninguém tivesse pedido uma avaliação oficial da sanidade de Chico. Mas, no primeiro julgamento, como advogado, Flávio avaliou que “declará-lo inimputável seria condená-lo a nunca mais sair de um manicômio judiciário.” A promotoria, por sua vez, diante das chances claras de êxito na corte, tampouco quis um laudo de sanidade. No entanto, Markman revela que, pouco antes do julgamento, solicitou a uma amiga, a psiquiatra Luiza Jacob, que entrevistasse Chico em caráter privado. A médica alertou que em circunstâncias semelhantes ele poderia repetir o crime. Quando a possibilidade de fato se concretizou, foi um choque para Markman. Mas ele se apoia no dever profissional: “Busquei o melhor para meu cliente”.
Essa ambiguidade está no centro das contradições que cercam o caso do preso mais antigo do sistema penitenciário brasileiro. Levado para a Casa de Custódia de Taubaté em 1976, nunca recebeu tratamento psiquiátrico. Ainda assim, atravessou quatro décadas encarcerado sem que tivesse, nas palavras do amigo, “nem uma rusga sequer com ninguém”. Leitor voraz de Kafka e Dostoievski – a quem já chamou de “Deus” em uma entrevista –, foi escolhido pelos funcionários para organizar a biblioteca do presídio, com cerca de 300 volumes. Ele se dedica à pintura e escreve com português impecável. “Acho que foram suas cartas que me mantiveram ligado a ele por todos estes anos”, conta o único visitante regular depois da morte de d. Nancy. Entre as grades, sobreviveu às rebeliões do PCC, que surgiu no presídio de Taubaté nos anos 90.
Pena sem fim. Em junho de 1998, Francisco Costa Rocha cumpriu a pena máxima permitida pela Constituição brasileira – que não admite “caráter perpétuo”. Seu alvará de soltura chegou a ser expedido pelo juiz de execuções penais do Estado. Mas a promotoria de Taubaté interveio para impedir a libertação. Era o ano em que João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha, ganhou as ruas após 30 anos de prisão e acabou morto, meses depois, em uma briga de bar. Havia grande temor na opinião pública em relação ao tema. O recurso jurídico para mantê-lo preso foi uma interdição civil dizendo que ele era incapaz de tomar decisões sozinho.
Nessa época, escreveu a Markman uma de suas cartas mais angustiadas: “Será que agora que vejo as trevas e as luzes da alma humana, tendo me decidido pelo caminho da luz, iria novamente trilhar o outro caminho, por duas vezes conhecido, que conduz ao abismo??? Não. Francamente, não. Pensar o contrário seria negar a evolução da espécie, a evolução humana. A vida não caminha para trás. Nada está definitivamente estático. A sentença de interdição em regime fechado é extremamente preventiva, exacerbada, desnecessária. Por favor, dr. Flávio, queira ver o que pode ser feito por mim, pela recuperação do ser humano, pois eu me tornei humano”.
Em agosto de 2003, o advogado José Fernando Rocha, curador designado para cuidar dos interesses de Chico, recorreu ao Supremo Tribunal Federal, mas o habeas-corpus foi negado pelo então ministro Sepúlveda Pertence. “Francisco nunca teve atendido seu pedido de indicar um perito médico de sua confiança que fosse independente do Estado para que pudesse exercitar seu direito de defesa”, alega o curador. “Além do mais, não há justificativa para que ele permaneça em um local onde não recebe nenhum tratamento.”
Sem outra instância a recorrer, Fernando Rocha encaminhou, em agosto passado, queixa à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), que ainda não se manifestou a respeito. “Manter um homem em pena perpétua pela mera presunção de que ele possa vir a cometer um crime é um absurdo que, como legalista, não posso admitir”, inconforma-se Flávio Markman.
A escritora Ilana Casoy, autora de Serial Killers Made in Brasil (Ediouro, 2007), que analisa, entre outros, o caso Chico Picadinho, também se recusa a entrar no mérito da discussão sobre sanidade ou riscos: “O fato é que ele era um preso comum e cumpriu sua pena. Quando a gente dobra a lei de acordo com as circunstâncias, é o começo de um regime totalitário”. Por diversos meses, a reportagem do Aliás tentou entrevistar Francisco Costa Rocha em Taubaté, mas ele não quis falar por temer a forma como seria retratado. Em um postal enviado à redação, com uma pintura de sua autoria no verso, explicou: “Não posso atendê-lo, visto que firmei decisão, faz tempo, de não conceder entrevista à imprensa”.
Na sexta-feira, data do aniversário de 70 anos do amigo, Flávio Markman telefonou a Taubaté para ter notícias dele. Ninguém parecia se lembrar da data. “Fico imaginando o que deve ser passar décadas sozinho em uma cela de 4 m por 4 m, comendo o mesmo arroz com feijão e bife intragáveis que servem lá. Penso na quantidade de frutas que ele nunca provou, nos sabores que jamais vai conhecer.” Naquele último encontro, achou Chico particularmente amargurado. Entrou carrancudo e custou a sorrir. Entregou a Markman a cópia que recebera da petição feita à OEA, mas parecia não ter esperança. Só pouco antes do ex-advogado e amigo sair, repetiu o pedido enunciado em tantas correspondências: “O meu desejo, doutor, era morrer em liberdade”.
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