Beatriz Mendes
Imagine não saber que Vinicius de Morais foi um artista boêmio. Ou que Manuel Bandeira sofria de uma forte tuberculose e que Raul Seixas era viciado em álcool e drogas. São essas características que dão à personalidade de uma figura pública pequenas pitadas de humanismo e de proximidade com seus fãs. Por vezes, essas marcas são essenciais para que as obras deses artistas sejam compreendidas e cedem certo grau de comicidade à sua biografia – como a clássica imagem atribuída a D. João VI, sempre carregando uma gorda coxa de frango em uma das mãos.
Dificilmente alguém se recusa a reconhecer a importância desses relatos da vida das celebridades. Entretanto, a publicação de biografias não autorizadas às vezes gera atritos entre o autor e as famílias desses artistas, que não querem ter a intimidade de seu parente – e também a sua própria – revelada à população. No Brasil, por conta de processos judiciais, essas obras podem ser até mesmo recolhidas das livrarias – uma ação que fica na linha tênue entre o respeito à privacidade e a afronta à liberdade de expressão.
Recentemente foi a vez da vida de Lampião ser foco de polêmicas. Em novembro do ano passado, Aldo Albuquerque, juiz da 7ª Vara Cível de Aracaju, expediu uma liminar – a pedido de Expedita Ferreira, filha do cangaceiro – suspendendo a publicação do livro Lampião mata sete, no qual o juiz aposentado Pedro de Morais defende a tese de que Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Rei do Cangaço, seria homossexual. “Não chega a ser nem um capítulo do meu livro, mas eu questiono o assédio dele aos meninos do cangaço e o fato de eles serem tão próximos”, explica Morais, em entrevista à CartaCapital. Albuquerque manteve a ordem de proibição em ação divulgada no último dia 11.
O juiz de 67 anos conta que seu trabalho não foi o primeiro a tratar do assunto. Segundo ele – que se diz um aficionado por Lampião desde criança -, o historiador e antropólogo Luiz Mott já havia abordado a suposta homossexualidade do cangaceiro. “O professor já falava sobre isso 30 anos atrás. Tem uma tese na Sorbornne que cita esse lado feminino de Lampião. Todo mundo aqui no nordeste sabe que ele era um exímio estilista e gostava de plumas, paetês e perfumes franceses”, defende-se.
Mas não é só a orientação sexual do Rei do Cangaço que foi abordada. Pedro de Morais também colocou a fidelidade de Maria Bonita à prova. “Maria Bonita foi um personagem criado pela literatura de cordel. Todos sabem que existia um triângulo amoroso entre ela, Lampião e Luiz Pedro. Estácio de Lima, o maior defensor do cangaço no País foi o primeiro a dizer isso”.
Para Morais, sua biografiade Lampião foi a primeira a ser proibida no País porque é sincera. “Todo mundo tratou do mito. O que eu fiz foi falar sobre Lampião, o bandido”, argumenta. O juiz afirma, ainda, que o fato de ele ter afirmado que o Rei do Cangaço era gay não é justificativa suficiente para a proibição. “Eu falei que ele era um facínora, bandido, ladrão, cruel e nunca houve problema algum. Inclusive, a família até respeita a divulgação desses fatos. Agora eu digo que Lampião era gay e as pessoas proíbem o meu livro? Eu acho que esse pessoal é muito preconceituoso”, dispara.
Outro Lado
Aldo Albuquerque afirma que se baseou na Constituição para vetar o lançamento de Lampião mata sete. O juiz, que não leu o livro, avaliou o teor da obra de Pedro Morais a partir de uma entrevista concedida por ele ao jornal Cinform, publicação que circula em Sergipe. Aliás, foi a partir da mesma reportagem – intitulada “Lampião era boiola e não tinha capacidade de ereção” – que a filha do cangaceiro ficou sabendo do lançamento da biografia. “Não li o livro, pois não foi juntada cópia no processo. Apesar disso, pelas próprias palavras do autor do livro na entrevista, percebe-se facilmente que a obra agride a imagem de Lampião”, analisa.
Albuquerque acredita existir uma diferença entre relatar os crimes do cangaceiro e falar sobre sua orientação sexual. “Os crimes praticados por Lampião são fatos sociais, públicos e cuja apuração e circunstâncias devem ser levadas ao conhecimento da população sem restrições, pois nesse caso existe legítimo interesse social. Por outro lado, ninguém tem o direito de tratar da opção sexual de quem quer que seja, com exceção da sua própria. Imagine se alguém, com base na liberdade de expressão, divulgue uma notícia, dizendo que determinada pessoa pública, casada, somente mantém relação sexual com o cônjuge, uma vez por mês?”, questiona.
Projeto de Lei
O deputado federal Newton Lima (PT-SP) discorda de Aldo Albuquerque. “É um equívoco, não cabe ao juiz dar uma sentença a partir de um juízo de valor próprio sobre o que é relevante ou não em uma obra. Porque cada um tem pensamentos religiosos, ideológicos e morais diferenciados. Ele deve julgar à luz da constituição e não a partir de suas concepções de vida”, critica.
O deputado é o autor de um projeto de lei que pretende modificar o artigo 20 do Código Civil brasileiro, para garantir a divulgação de imagens e informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública, cuja trajetória pessoal tenha dimensão inserida em acontecimentos de interesse da coletividade. “O que queremos mostrar é que, ao se escrever a biografia de um determinado personagem de nossa história, seja um político, um artista ou até mesmo um anônimo ou um homem simples do povo, o que se está escrevendo é a própria história da sociedade na qual o personagem está inserido, uma vez que não existe sujeito histórico isolado, sem uma contextualização de sua vida no espaço e tempo históricos.”
Lima afirma que a legislação brasileira a tratar do assunto é ambígua, pois não faz distinção entre pessoas públicas e anônimas. “É evidente o protagonismo que um jogador de futebol consagrado ou artista popular exercem sobre a tomada de escolhas das pessoas ditas comuns. Desde a simples adoção da mesma modalidade de corte de cabelos até a inspiração de comportamentos e condutas diretamente ligadas à figura da pessoa pública, percebemos que tais personalidades desempenham papel de verdadeiras pessoas-espelho para um amplo corpo social”, afirma.
O deputado argumenta que é necessária uma adequação do Brasil à realidade internacional. “Em outros países, como, por exemplo, a Inglaterra e os Estados Unidos, o fato das personalidades frequentarem constantemente a mídia diminui o seu direito de imagem e privacidade, tornando lícitos, por exemplo, a publicação de biografias não autorizadas e a realização de obras audiovisuais sobre elas, sem a necessidade de prévio consentimento.”
O projeto de lei já foi aprovado e agora será apreciado pela Comissão de Constituição e Justiça. No País, biografias de Roberto Carlos, Garrincha e João Guimarães Rosa são exemplos de obras que já foram vetadas.
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