segunda-feira, 9 de novembro de 2015

"Corrupção, um mito político", por Tércio Sampaio Ferraz Júnior


Folha de São Paulo


Qualquer um conhece esse jogo de luz e penumbra, que acompanha, com sua carga de ambiguidade, a tênue escala de expressões existentes no vocabulário brasileiro: cervejinha, gorjeta, jeitinho, caixinha, ajudinha, lubrificar, taxa de urgência, por fora, esquema, rolo, molhar a mão, mamata, negociata, propina, falcatrua, caixa dois etc.

Embora, nos dias de hoje, corrupção seja um tema, tratado na legislação e verberado moralmente, talvez não se trate propriamente de um problema jurídico nem mesmo ético, mas de um mito político. Não mito no sentido de fabulação, mas de um modo de perceber as coisas.

Cesar

É algo que não pode ser eliminado, não porque o homem seja moralmente fraco, mas porque nossa concepção de corrupção não permite sua eliminação. Há uma espécie de correlação entre corrupção e crítica da corrupção, da qual emergem conceitos de corrupção.

Nos últimos 200 anos, o favorecimento de parentes e agregados foi perdendo força, substituído por uma nova mentalidade: a ação humana movida pelo ganho e pela acumulação, o que exige eficiência –a franca liberdade de iniciativa somada ao Estado burocrático/regulador– e uma forte diferenciação funcional entre público e privado.

A partir da Revolução Francesa, o mundo ocidental viu aparecer figuras até então desconhecidas: o político profissional e o empresário, o que tornaria suspeita a confusão dos respectivos papéis.

Com isso surgiu uma progressiva diferenciação entre administração, Parlamento e partido, donde o entendimento da política como uma "questão de consciência" do cidadão, com uma crescente integração entre opinião pública e imprensa a alimentar-se do escândalo que ganha repercussão generalizada: a opinião pública massificada.

Foi nesse quadro que o conceito moderno de corrupção passou a ser uma técnica de poder intimamente ligada à crítica e à denúncia do abuso de papéis públicos para uso privado e vice-versa.

Associada à noção de progresso, essa técnica engendrou políticas voltadas para as massas, produzindo acusações do caráter pernicioso da corrupção, presentes em todos os grandes movimentos ideológicos de luta pelo poder do século 20, de direita ou de esquerda.

Essa nova situação acabou por reinventar-se, produzindo um clientelismo de nova ordem, como observamos na mudança ocorrida no Brasil desde a Revolução de 30, com o progressivo enfraquecimento do coronelismo e a ascensão das diferentes formas de peleguismo.

Aparece, assim, na correlação entre corrupção e crítica à corrupção um dilema que repousa em racionalizações divergentes. No interesse de empreendimentos políticos, econômicos ou financeiros, a corrupção deve ser banida, pois, no limite, ela conduz a uma disfunção dos sistemas. Porém, empreendimentos absolutamente íntegros parecem, às vezes, ineficientes.

Embora não o único, um importante aliado contra a corrupção talvez seja o mercado financeiro. Uma administração econômica legítima e sustentável deve estar submetida ao juízo dos investidores. Para isso são necessários os auditores independentes, as agências de rating e as autoridades financeiras.

A experiência mostra que a administração empresarial nada mais teme que o mau juízo de investidores financeiros. Mas onde fica a transparência nas empresas privadas? E nas empresas públicas?

Estruturas empresariais autocráticas, privadas ou públicas, não resolvem o problema e devem ser criticadas. Muito ajuda na luta contra a corrupção uma imprensa livre, com jornalistas especializados em questões econômicas.

Haveria uma alternativa? A Indonésia há alguns anos fez uma proposta curiosa. Funcionários corruptos deveriam ser castrados. A fundamentação para essa pena corporal seria impedir que funcionários corruptos se multiplicassem! Ou deveríamos antes buscar uma "pílula anticorrupcional"?
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, 74, é professor aposentado da Faculdade de Direito da USP e professor emérito da Faculdade de Direito da USP-Ribeirão Preto

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