“Ah, foi isso, foi aquilo, foi míssil, foi falha humana!” – mas o intempestivo não é previsível, a loucura não se explica. Como explicar a mente de um homem-bomba? O piloto foi um homem-bomba do Ocidente… Não o fez por ódio por religião, nada. Fez porque queria fazer o inominável, queria conhecer o limite, o segundo antes da morte, como o Muhammed Atta, intelectual ateu que comandou o suicídio do 11 de Setembro. Dizem que o melancólico se suicida fantasiando que renasce depois. Ele queria também se vingar dos que não sentiam sua dor. Ou não...
Temos a crença na razão; mas a razão é uma fímbria de nossa loucura. E quando explode o avião, como arranjar o culpado que nos absolva? Nesse caso, ao menos, temos alguém para amaldiçoar: o maluco do piloto. A catástrofe serve para revitalizar o inútil, a importância do nada, da ausência de urgências, uma saudável tristeza vil. Lembro quando aquela plataforma da Petrobras afundou suavemente, sentimos uma sensação de realidade. Sempre que há uma catástrofe nacional, irrompe uma estranha euforia de cabeça para baixo. É como se a opinião pública dissesse: “Eu não avisei?”
De resto, hoje não temos mais o desastre com culpados visíveis. Quem explodiu o shopping center de Osasco, “remember”? Foram os construtores daquela zorra, os engarrafadores de gás ou os ratos que roeram os tubos de borracha? Ninguém. As catástrofes de hoje são defeitos de funcionamento. Assim como as máquinas de lavar quebram, assim caem os aviões. Assim morremos.
Terrível é a catástrofe sem vilões. É a catástrofe da ausência do Mal. O Mal é um mau cheiro difícil de localizar. Onde está o Mal? Ainda temos reservas, no terrorismo islâmico, nos radicais árabes e judeus, nos degoladores argelinos. Mas até o assassino suicida acha que está combatendo o Mal! Estamos na sociedade do erro inextrincável.
Cada vez que há uma catástrofe é terrível, temos uma brusca sensação de vida, da realidade.
Existem também as tragédias que ficam paradas, invisíveis como areias movediças. São as tragédias sutis, prontas para disparar: controladores de voo malpagos, mecânicos que moram em favelas, a má qualidade dos aviões que pegam passageiros como ônibus, a necessidade de otimizar lucros, terceirização da manutenção e encrencas técnicas que não sabemos resolver, gatilhos brasileiros, jeitinhos, quebra-galhos misteriosos (quantos haverá?), pilotos angustiados, comandantes em crise conjugal, aeromoças feias e tristes, banquinhos apertados, o tédio dos serviços, os desestímulos dos baixos salários, tudo se soma até o sintoma sinistro dos lanchinhos tristes e dos croquetes frias na caixinha plástica.
Dentro do avião (só entro de pé direito), nos sentimos perto do mistério. As aeromoças têm um halo lívido em suas cabeças. Como Nelson Rodrigues, tenho vontade de perguntar:
“Vocês morrem quando?” Estaremos marcando nosso fim no balcão da companhia? Por isso, quando ele cai (e não estamos dentro), temos um alívio e um horror infinito – como terá sido a hora da morte? Jamais saberemos.
Enquanto isso, está ali a tragédia invisível, parada, está ali o tempo todo, debaixo do nosso nariz, pronta para fazer sua aparição. Já olharam Congonhas? É bordado de edifícios de 15 andares bem do lado da pista. Outro dia vi uma garotinha fazendo bolhas de sabão numa varanda, e eu me senti uma daquelas bolhas prestes a estourar. Já o aeroporto Santos Dumont tem pista curta. O Boeing desce freando; antes de encostar no chão, já canta os pneus. Sempre tenho as duas fantasias horrendas: ou explodir numa sala de jantar de Jabaquara, ou ver badejos e tainhas pulando na minha janela ao pousar no Rio.
Mas ninguém liga para essas tragédias invisíveis, máquinas silenciosas. Ninguém liga para a tragédia sem sangue, sem corpos mutilados. A tragédia invisível parece que não é trágica. Queremos transformar a fatalidade em acidente. Mas há uma diferença. O acidente é a explosão do acaso, a bolha de sabão, a falha da vida. O acidente é um “ato de Deus”, como dizem os norte-americanos. No entanto, sempre queremos explicar as causas do acidentes. Tudo tem de ser entendido. Mas o tempo da causa e efeito acabou. A fatalidade é o que tinha de acontecer ou acabar acontecendo. O que estava armado para rolar. Queremos explicar os acidentes para esquecermos que a fatalidade nos espreita ali nas ruas do atraso e da incompetência. Há, sobretudo, a catástrofe da nossa insensibilidade crescente diante do horror. Os fatos estão além da piedade. Há o tédio crescente pela catástrofe, quando a alma vai virando uma grande pele de rinoceronte.
Sempre tremo quando entro numa aeronave. Há alguma coisa de antinatural no grande avião. Nunca entendo que aquilo possa voar. Uma vez um amigo estava num voo de Paris para o Rio. São 4h da manhã, quando apagam tudo e até as aeromoças dormem. Tudo calmo no luxo do cruzeiro. Súbito, o grande Jumbo começa a cair. Cair, literalmente, embicado para baixo, como um Stuka na Segunda Guerra. E todos voavam e uivavam como galinhas em pânico dentro da nave que descia como um prego. Ele contou-me que simplesmente “morreu” na queda de dois ou três minutos entre centenas de desgraçados. Até que, por milagre, o avião se estabilizou. Meu amigo se beliscava, não acreditando na própria vida. A causa dessa “tragedia-sub” foi uma travesti em crise, deportada da França, que jogou uma bomba de gás lacrimogênio na cabine de comando. Só! Vingança da bicha louca! Por milagre, o copiloto tinha ido fazer xixi (sempre o xixi) e voltou a tempo de segurar o Jumbo na mão.
“Coisas nossas” contra o Boeing. A solidão da pobre “traveca” contra a tecnologia de ponta.
Temos a crença na razão; mas a razão é uma fímbria de nossa loucura. E quando explode o avião, como arranjar o culpado que nos absolva? Nesse caso, ao menos, temos alguém para amaldiçoar: o maluco do piloto. A catástrofe serve para revitalizar o inútil, a importância do nada, da ausência de urgências, uma saudável tristeza vil. Lembro quando aquela plataforma da Petrobras afundou suavemente, sentimos uma sensação de realidade. Sempre que há uma catástrofe nacional, irrompe uma estranha euforia de cabeça para baixo. É como se a opinião pública dissesse: “Eu não avisei?”
De resto, hoje não temos mais o desastre com culpados visíveis. Quem explodiu o shopping center de Osasco, “remember”? Foram os construtores daquela zorra, os engarrafadores de gás ou os ratos que roeram os tubos de borracha? Ninguém. As catástrofes de hoje são defeitos de funcionamento. Assim como as máquinas de lavar quebram, assim caem os aviões. Assim morremos.
Terrível é a catástrofe sem vilões. É a catástrofe da ausência do Mal. O Mal é um mau cheiro difícil de localizar. Onde está o Mal? Ainda temos reservas, no terrorismo islâmico, nos radicais árabes e judeus, nos degoladores argelinos. Mas até o assassino suicida acha que está combatendo o Mal! Estamos na sociedade do erro inextrincável.
Cada vez que há uma catástrofe é terrível, temos uma brusca sensação de vida, da realidade.
Existem também as tragédias que ficam paradas, invisíveis como areias movediças. São as tragédias sutis, prontas para disparar: controladores de voo malpagos, mecânicos que moram em favelas, a má qualidade dos aviões que pegam passageiros como ônibus, a necessidade de otimizar lucros, terceirização da manutenção e encrencas técnicas que não sabemos resolver, gatilhos brasileiros, jeitinhos, quebra-galhos misteriosos (quantos haverá?), pilotos angustiados, comandantes em crise conjugal, aeromoças feias e tristes, banquinhos apertados, o tédio dos serviços, os desestímulos dos baixos salários, tudo se soma até o sintoma sinistro dos lanchinhos tristes e dos croquetes frias na caixinha plástica.
Dentro do avião (só entro de pé direito), nos sentimos perto do mistério. As aeromoças têm um halo lívido em suas cabeças. Como Nelson Rodrigues, tenho vontade de perguntar:
“Vocês morrem quando?” Estaremos marcando nosso fim no balcão da companhia? Por isso, quando ele cai (e não estamos dentro), temos um alívio e um horror infinito – como terá sido a hora da morte? Jamais saberemos.
Enquanto isso, está ali a tragédia invisível, parada, está ali o tempo todo, debaixo do nosso nariz, pronta para fazer sua aparição. Já olharam Congonhas? É bordado de edifícios de 15 andares bem do lado da pista. Outro dia vi uma garotinha fazendo bolhas de sabão numa varanda, e eu me senti uma daquelas bolhas prestes a estourar. Já o aeroporto Santos Dumont tem pista curta. O Boeing desce freando; antes de encostar no chão, já canta os pneus. Sempre tenho as duas fantasias horrendas: ou explodir numa sala de jantar de Jabaquara, ou ver badejos e tainhas pulando na minha janela ao pousar no Rio.
Mas ninguém liga para essas tragédias invisíveis, máquinas silenciosas. Ninguém liga para a tragédia sem sangue, sem corpos mutilados. A tragédia invisível parece que não é trágica. Queremos transformar a fatalidade em acidente. Mas há uma diferença. O acidente é a explosão do acaso, a bolha de sabão, a falha da vida. O acidente é um “ato de Deus”, como dizem os norte-americanos. No entanto, sempre queremos explicar as causas do acidentes. Tudo tem de ser entendido. Mas o tempo da causa e efeito acabou. A fatalidade é o que tinha de acontecer ou acabar acontecendo. O que estava armado para rolar. Queremos explicar os acidentes para esquecermos que a fatalidade nos espreita ali nas ruas do atraso e da incompetência. Há, sobretudo, a catástrofe da nossa insensibilidade crescente diante do horror. Os fatos estão além da piedade. Há o tédio crescente pela catástrofe, quando a alma vai virando uma grande pele de rinoceronte.
Sempre tremo quando entro numa aeronave. Há alguma coisa de antinatural no grande avião. Nunca entendo que aquilo possa voar. Uma vez um amigo estava num voo de Paris para o Rio. São 4h da manhã, quando apagam tudo e até as aeromoças dormem. Tudo calmo no luxo do cruzeiro. Súbito, o grande Jumbo começa a cair. Cair, literalmente, embicado para baixo, como um Stuka na Segunda Guerra. E todos voavam e uivavam como galinhas em pânico dentro da nave que descia como um prego. Ele contou-me que simplesmente “morreu” na queda de dois ou três minutos entre centenas de desgraçados. Até que, por milagre, o avião se estabilizou. Meu amigo se beliscava, não acreditando na própria vida. A causa dessa “tragedia-sub” foi uma travesti em crise, deportada da França, que jogou uma bomba de gás lacrimogênio na cabine de comando. Só! Vingança da bicha louca! Por milagre, o copiloto tinha ido fazer xixi (sempre o xixi) e voltou a tempo de segurar o Jumbo na mão.
“Coisas nossas” contra o Boeing. A solidão da pobre “traveca” contra a tecnologia de ponta.
Muito bom.
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