domingo, 1 de março de 2015
O pagamento de propina a agentes públicos não era o único mecanismo de atuação do cartel investigado pela Operação Lava-Jato. Documentos obtidos pelo GLOBO mostram que o grupo conseguiu interferir diretamente em procedimentos internos da Petrobras, causando prejuízos milionários à estatal por meio da Associação Brasileira de Engenharia Industrial (Abemi), entidade que teve como presidente o líder do “Clube das empreiteiras”, Ricardo Pessoa, entre 2004 e 2008. Em grupo de trabalho com participação da Petrobras, a associação produziu, desde 2002, pelo menos 157 procedimentos e comunicados com revisão de regras de contratação. Hoje, os próprios funcionários da Petrobras admitem que boa parte foi lesiva à estatal. Comunicado produzido por Abemi e Petrobras, em dezembro de 2007, instituiu, por exemplo, procedimento para pagamento de indenização por chuvas ou descarga elétrica, fazendo com que a estatal assumisse automaticamente o risco do empreendimento. Dentre os novos procedimentos, um deles chamou a atenção por fazer com que as chuvas fizessem aumentar o valor de uma obra em até 50%. No contrato de terraplanagem assinado no Comperj com o consórcio formado por Andrade Gutierrez, Odebrecht e Queiroz Galvão, a obra, planejada por R$ 819 milhões, terminou 16 meses depois ao custo de R$ 1,223 bilhão — a diferença de R$ 404 milhões se deu justamente por conta de quatro aditivos relacionados às chuvas. As cláusulas passaram a valer para todas as empreiteiras com contratos com a Petrobras e também foram usadas, pelo menos, nas obras da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. A nova regra foi defendida pelo então gerente da estatal, Pedro Barusco, e levada à Diretoria Executiva da Petrobras por Renato Duque. Em depoimento ao Ministério Público Federal, Barusco relatou pagamentos de propinas nessa obra do Comperj que podem ter chegado a R$ 34,3 milhões, se considerados o contrato principal e aditivos. Esse valor teria sido pago a Paulo Roberto Costa e ao PT, mas o ex-gerente não soube detalhar como isso teria sido efetivado. Para determinar o valor a ser desembolsado pela estatal em função de chuvas, a referência era uma tabela da Abemi com custos médios diários de paralisação. Os pagamentos ocorriam tanto em função de precipitações já ocorridas quanto em função de estimativas para os meses seguintes. Quando o contrato da obra foi assinado, em março de 2008, já estavam previstos R$ 130 milhões para indenização por paralisações. “Embora geralmente, conforme previsão nos contratos, cada uma das partes fique responsável pelos próprios prejuízos decorrentes de caso fortuito, é possível que umas das partes se responsabilize pela integralidade dos custos”, escreveu o departamento jurídico da estatal em parecer em defesa do uso da tabela Abemi de chuvas na obra do Comperj. Em depoimento à Justiça Federal no Paraná no início deste mês, o gerente de Segurança Empresarial da Petrobras, Pedro Aramis, criticou a regra instituída: "O volume de chuvas histórico de uma região já deveria fazer parte do contrato de uma obra, sem qualquer custo adicional", diz o dirigente, para quem a implantação da tabela Abemi representou maiores custos à estatal: "A Petrobras passou a indenizar por chuvas que ela não indenizava antes". Mestre em Direito civil, diretor executivo do Instituto de Direito Privado (IDP) e atualmente vinculado à Universidade Mackenzie, Diogo Leonardo Machado de Melo diz que cláusulas de chuva são admissíveis em contratos de grandes obras. Mas devem ser baseadas em estudos de pluviometria da área e nunca ultrapassar 20% do valor total da obra. "Apenas em casos como os de calamidade pública, que fogem da previsão de qualquer governo ou empresa, pagamentos acima de 20% são admissíveis. Mas a empresa contratada tem que provar que algo absurdo aconteceu, em um processo administrativo. Um bom gestor deve pedir a realização de perícia, o pagamento não é automático. A Petrobras não poderia abrir os cofres e aceitar a excepcionalidade como regra", afirma o especialista. Em dezembro do ano passado, o ex-gerente jurídico da área de Abastecimento da Petrobras, Fernando de Castro Sá, afirmou em depoimento à Polícia Federal que a interferência da Abemi nas premissas de contratação da estatal coincidiu com a atuação do cartel de empreiteiras denunciado pelo Ministério Público Federal. Segundo ele, a partir daí, as regras reunidas desde 1999 no manual de procedimentos contratuais foram “rasgadas”. "A minuta que tinha que ser elaborada pelo jurídico e aprovada pela diretoria passou a ter que contar com o crivo da Abemi", diz o dirigente, que atribui ao ex-diretor de Serviços, Renato Duque, a atuação mais relevante em nome dos interesses da Abemi dentro da estatal. Castro Sá afirma ter se “assustado” quando a estatal passou a revisar a minuta contratual padrão e exigir que seu setor submetesse os documentos para “análise da Abemi” antes das reuniões do grupo de trabalho. Ao alertar colegas sobre a irregularidade, ele afirma ter sido reprimido em reunião por Renato Duque: "Eu e a Venina (Fonseca, ex-gerente de Abastecimento) levamos uma escovada do diretor Duque. Ele dizia que a gente estava atrapalhando, não sabia como as empreiteiras trabalhavam, e que se não fosse do jeito que faziam, não ia se conseguir contratar". O GLOBO perguntou à Petrobras qual era a média histórica e qual foi a média de chuvas entre 2008 e 2010 na região do Comperj, mas a estatal não respondeu.
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