Posted: 29 Nov 2014 11:00 PM PST
Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Carlos I. S. Azambuja
O dia 4 de novembro de 1970, quando Salvador Allende, então senador pelo Partido Socialista, saiu do Congresso rodeado pelo povo, dirigindo-se ao Palácio La Moneda para assumir a presidência do Chile, marcou o início no país de um período pré-revolucionário, com o qual a luta de classes intensificou-se como nunca antes.
Todos os militantes do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) – uma organização fundada em 1965 e voltada para a luta armada - que se encontravam encarcerados, cumprindo penas, foram anistiados por Allende em 31 de dezembro de 1970.
Graças a isso, a partir daí teve início uma aliança de fato, não formal, entre a Unidade Popular (PC, PS, etc., coligação de partidos que elegeu Allende) e o MIR. A aliança, porém, teve um começo muito difícil, pois o Partido Comunista Chileno tinha uma séria discrepância política com o MIR. Nesse sentido, Allende interveio e, em uma reunião presidida por ele (conseguida por seu sobrinho, Andrés Pascal Allende que era membro da direção do MIR), com delegações do PC e do MIR, exigiu que o PC estabelecesse uma relação de respeito e entendimento com o MIR.
A UP, que em seu programa planejava transformar o Estado em um Estado Popular, assinalava que seria necessário eleger uma Assembléia do Povo e o próprio Allende articulava a luta para desenvolver o Poder Popular, que entendia como a extensão da participação popular na administração econômica, social e cultural do país, através de uma nova Constituição Política que institucionalizaria essa incorporação massiva ao Poder.
Em uma série de reuniões entre Allende e os dirigentes do MIR, sempre levados ao presidente Allende por seu sobrinho, foi-lhe dito, com franqueza, que o MIR discordava de sua estratégia de levar adiante o processo de transição ao socialismo somente dentro da institucionalidade vigente, pois as classes dominantes não aceitariam o fim de seus privilégios e a transformação do Estado-Burguês, e que as camadas médias se juntariam aos possuidores de terras e à grande burguesia nacional e estrangeira para, juntos, enfrentarem o governo popular e que, na melhor das hipóteses, se poderia conseguir que uma parte das Forças Armadas se somasse ao campo popular, porém o enfrentamento armado seria inevitável.
Aproveitando a ampliação das liberdades democráticas, o MIR passou a impulsionar a mobilização de massas. A partir das ações diretas dos índios mapuches e com o alento do Movimento Camponês Revolucionário (MCR), foram feitas uma série de invasões de terras, no que foi chamado verão quente de 1971. Também foram impulsionadas as mobilizações sindicais e as ocupações de indústrias e propiciada a constituição de novos acampamentos de trabalhadores sem teto.
O MIR aproveitou também a participação de seus militantes em tarefas da segurança do presidente – Grupo de Amigos do Presidente (GAP) - para lograr um silencioso avanço em instrução militar, logística e Inteligência. Foi dado um maior impulso à vinculação com setores democráticos das Forças Armadas e de autodefesa das massas. O MIR, assim, se estendeu organicamente através do país.
No entanto, a aliança informal entre a UP e o MIR começou a deteriorar-se a partir do segundo semestre de 1971. O PC, outra vez, lançou-se a atacar o MIR publicamente. A visita de Fidel Castro ao Chile porém, conteve a polêmica. Durante boa parte do mês de novembro e princípios de dezembro, Fidel percorreu o país, alentando com sua palavra e exemplo as aspirações revolucionárias. Para apoiar a segurança periférica nos atos e viagens de Fidel, o MIR se mobilizou e participou coordenadamente com a equipe de segurança cubana. Seus dirigentes reuniram-se várias vezes com Fidel, que sempre insistiu na necessidade de ser preservada a unidade do conjunto da Esquerda.
Em março de 1972, os dirigentes dos partidos de oposição e das federações empresariais se reuniram para organizar um vasto plano de mobilizações de resistência civil ao governo.
Apesar dos bons resultados da política econômica que o governo conseguiu durante o ano de 1971, essa política, no primeiro semestre de 1972, começou a dar mostras de esgotamento e a partir de 1972 o desabastecimento começou a ser sentido.
Desde o início de 1972 o MIR passou a agitar sobre a necessidade de substituir o insuficiente Programa da UP por um novo Programa do Povo.
Entre os 10 pontos fundamentais, sugeria a desapropriação imediata de todas as empresas norte-americanas; a expropriação de todas as empresas-chave da indústria; o controle operário de todas as empresas privadas; um apelo às tropas, soldados, suboficiais e oficiais democratas para enfrentar o golpismo e unir-se ao povo; a luta pela dissolução do Parlamento e a criação de órgãos do Poder Popular a partir dos Conselhos Comunais de trabalhadores e camponeses.
Em junho de 1972, o setor reformista da UP acabou por impor-se e Allende substituiu o Ministro da Fazenda, Vuskovic, por Orlando Millas, do PC. Millas implementou uma política de ajuste que fez com que a inflação disparasse e não fosse contido o crescente desabastecimento, fazendo com que aumentasse o mal-estar nos setores médios e populares.
Em 22 de julho de 1972 foi constituída pelo MIR a Assembléia do Povo de Concepción, como expressão de um Poder Popular regional autônomo, iniciativa que foi duramente atacada pelo PC e pelo próprio presidente Allende.
A Unidade Popular e o governo perdiam cada vez mais sua iniciativa na luta contra a reação burguesa. A inflação estava em constante alta, o desabastecimento e o mercado negro se ampliavam, o chamado terrorismo de direita se multiplicou e as marchas e agitação da oposição eram crescentes. A campanha antigovernamental da imprensa e das rádios opositoras era massiva.
Paralelamente ao desenvolvimento das Juntas de Abastecimento Populares (JAPs) e dos Comitês de Autodefesa, foram criados os Cordões Industriais na cidade e se estenderam os Comandos Comunais no campo, iniciando-se assim, desde a base, formas elementares de Poder Popular.
Os Comandos Comunais, impulsionados pelo MIR, buscavam unificar localmente as diferentes camadas do povo e assentar as bases da constituição de Assembléias do Povo regionais. Foi promovido o desenvolvimento das tarefas de autodefesa miliciana, do controle operário, das JAPs, etc., e foi redobrada a agitação dentro das Forças Armadas. Todavia, ficou evidenciado que o MIR, por si só, não dispunha de força suficiente para aproveitar plenamente a conjuntura revolucionária e necessitava que também a esquerda da UP se voltasse, com decisão, para a construção do Poder Popular. Todavia, a forte oposição dos setores reformistas a fizeram vacilar.
Em novembro, o presidente Allende nomeou vários generais para o Ministério, como garantidores da institucionalidade e da paz social. Com o voto favorável da UP, o Parlamento votou a Lei de Controle de Armas, que permitia que as Forças Armadas atuassem sobre os grupos civis armados que introduziam a violência com seus atentados, sabotagens e enfrentamentos e, sobretudo, outorgou aos militares um papel reitor na vida política do país. A própria Esquerda, assim, permitiu a função tutelar das Forças Armadas.
Paralelamente, os operários da empresa têxtil Hirmas que não obedeceram ao chamado do governo para devolver a indústria ocupada, e que impulsionaram a constituição de Comandos Comunais de Trabalhadores e as tarefas de autodefesa, puseram em frente à fábrica um enorme cartaz que dizia: “Defendamos esse governo de merda!”. Essa frase resumia, naquele momento, a tática revolucionária da Esquerda.
Em fins de 1972, o MIR havia logrado crescer no campo e na cidade, camadas do povo onde a influência da esquerda tradicional não era muito forte. Porém, junto à classe operária, apenas era incipiente o trabalho político do MIR. Daí a importância do papel da esquerda do Partido Socialista na acumulação de força revolucionária dentro da classe operária. Porém, seus dirigentes nunca assumiram com conseqüência as tarefas de construção do Poder Popular e jamais decidiram romper as amarras que os ligavam ao reformismo.
O MIR desenvolveu também aquilo que era chamado de “frentes intermediárias de massas”: FTR (trabalhadores urbanos), MCR (camponeses), MPR (povoadores), FER (estudantes), etc. Ao iniciar-se o período pré-revolucionário (dezembro de 1970), o MIR não superava os 3 mil membros mas em 1973 os militantes já eram 10 mil, e a soma das “frentes intermediárias” superava os 30 mil. Em conjunto, o mirismo organizado agrupou entre 40 e 45 mil pessoas.
Em março de 1973, o dirigente Renan Fuentealba foi substituído na direção da Democracia Cristã por Patrício Aylwin (eleito presidente do Chile nos anos 90), que representava a linha dura, isto é, a estratégia de deter o “avanço do marxismo” utilizando todos os meios, inclusive a resistência civil e a intervenção militar.
O MIR, por sua parte, convocou a Esquerda e o movimento de massas para enfrentar a ofensiva através de uma contra-ofensiva revolucionária apoiada na mobilização direta das massas, visando debilitar as bases do poder burguês, organizar e defender o poder popular e ganhar os setores democráticos das Forças Armadas.
Como encarregado do MIR para o trabalho junto aos tais setores democráticos das Forças Armadas, coube a Andrés Pascal Allende organizar uma reunião de Miguel Enriquez, Carlos Altamirano (Secretário-Geral do PS) e Oscar Guillermo Garretón (Secretário-Geral do MAPU), com uma delegação de suboficiais e marinheiros que se haviam organizado em oposição aos oficiais da Armada. O MIR, desde o ano de 1969 tinha vínculos com militares progressistas e muitos eram militantes miristas.
Andrés Pascal Allende reuniu-se diversas vezes com coronéis, majores e capitães que simpatizavam com o presidente Allende. Todos reclamavam uma política do governo mais ofensiva contra a oficialidade sediciosa e a coordenação dos militares democráticos com as organizações populares para que, ante o perigo de um golpe, eles pudessem dotá-las de armas das próprias FF AA.
O problema era que para tomar a iniciativa de atacar ofensivamente os golpistas e derrotá-los, o MIR tinha que fazê-lo nos espaços urbanos, constituindo amplas unidades milicianas regulares, orientadas com os militantes das tropas militares das instituições armadas, tudo isso acompanhado da organização do Poder Popular das massas.
Paralelamente, o MIR tinha que se preparar, também, para uma resistência política e ideológica em condições repressivas muito duras, mas carecia de tempo útil para a construção de força suficiente para ocupar todos os espaços e constituir distintos tipos de força ao mesmo tempo.
Buscando cumprir essas tarefas, a limitada capacidade do MIR foi dispersada e a organização foi feita de uma forma híbrida, o que neutralizou sua eficiência tática ante uma ou outra possibilidade.
Em meados de 1973 a chamada reação, em seu conjunto, aumentou sua ofensiva. Multiplicaram-se os atentados e sabotagens. Em 26 de julho foi assassinado o comandante Arturo Araya, ajudante de ordens e amigo pessoal do presidente. Os caminhoneiros iniciaram uma paralisação indefinida, à qual se somaram comerciantes e profissionais liberais, intensificando o boicote empresarial, acompanhado de um intenso fustigamento parlamentar e uma crescente campanha da imprensa. O governo não apenas perdeu todo o controle da economia que se debatia entre a hiperinflação e o desabastecimento, como tampouco nada de efetivo pôde fazer contra a ação revolucionária adversa.
No início de agosto de 1973, após ordenar o aquartelamento de seu pessoal, a Marinha desencadeou uma forte repressão interna, detendo mais de 300 suboficiais e marinheiros, a maioria vinculada ao MIR. Em outros ramos das FF AA começou-se a substituir, licenciar e sancionar os militares considerados de esquerda.
Em meados de agosto, na Marinha e na Aeronáutica a oficialidade descontente com o governo era maioria, embora no Exército ainda fosse minoritária. A maioria dos generais do Exército inclinava-se, todavia, para obrigar Allende a ceder o Poder às FF AA, mediante a constituição de um Ministério somente de militares ou então renunciar. Essa era a forma do “golpe brando”. Então, os partidários de um “golpe duro” ainda eram minoria.
Porém, uma provocação de esposas de oficiais que foram para a frente da casa do general Carlos Prats, Ministro do Exército, para exigir sua renúncia, foi a gota d’água. Quando o general Prats pediu ao corpo de oficiais-generais que assinassem um documento de desagravo à sua pessoa, mais da metade se negou a fazê-lo e isso fez com que ele, para manter a unidade corporativa, apresentasse sua demissão do cargo, sendo substituído pelo general Augusto Pinochet no dia 22 de agosto de 1973.
Nesse mesmo dia 22 de agosto a Democracia Cristã aprovou uma resolução, na Câmara dos Deputados, declarando “ilegal” o governo de Salvador Allende. Assim, a sorte do governo parecia selada.
Nesse instante, o MIR deu-se conta de que a desestruturação dos oficiais e suboficiais vinculados à esquerda, no interior das FF AA, era tamanha que não mais se poderia contar com eles para a obtenção de armas.
O presidente Allende, em uma ação desesperada, iria convocar nos próximos dias um plebiscito no qual seria provavelmente derrotado. Porém, os partidários do “golpe duro” lograram impor-se e se adiantaram, desencadeando o golpe de 11 de setembro. No dia seguinte, o presidente Allende deveria anunciar o tal plebiscito, em um ato que seria realizado na Universidade Técnica do Estado. Mas esse dia não veio, pois Allende cometeu o suicídio...
A partir daí, o MIR mergulhou na mais completa clandestinidade e, em pouco tempo, seria totalmente exterminado. Mas essa é outra história...
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
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