O fogo intenso que a candidata Dilma (PT) vem fazendo recair sobre Marina Silva (PSB), a quem acusou grosseiramente de ser “sustentada por banqueiros”, tem como um dos pontos principais o ataque à ideia da ex-senadora de promover a independência, por lei, do Banco Central, de forma a assegurar que suas decisões sobre controle da inflação e defesa da moeda não estejam submetidas a conveniências políticas.
Dilma não passa duas horas sem falar no assunto, como fez ontem, dirigindo-se a jornalistas:
– Minha filha, meu filho, esse povo da autonomia do Banco Central quer é o modelo anterior. Quer é fazer um baita ajuste (…), aumentar os juros pra danar, reduzir emprego e reduzir salário, porque emprego e salário não garantem a produtividade, segundo eles. Eu sou contra isso, eu tenho lado.
Dilma só pode ser contra um BC independente, uma vez que seu governo notoriamente lançou mão de mais pressão sobre o Banco Central para “segurar” os juros do que fez o próprio Lula, durante oito anos de lulalato (2003-2011) — que conferiu credibilidade à política econômica de seu governo que a sucessora está longe de alcançar.
O problema está na imensa hipocrisia contida nos ataques de Dilma a Marina. Pois fui justamente seu ainda hoje ministro da Fazenda, Guido Mantega, quem, como principal assessor para assuntos econômicos do então candidato Lula, viu-se durante a campanha presidencial de 2002 incumbido de estudar in loco, na Europa, como funcionam os bancos centrais que, por lei, gozam de independência, sejam de que partido forem os respectivos governos. ISSO FOI FEITO POR ENCOMENDA DE LULA.
Repito: POR ENCOMENDA DE LULA.
Na ocasião, como muitos se lembrarão, o PT queria afastar de si a imagem de terror dos mercados, de partido que daria calote na dívida externa se chegasse ao poder e, em seu processo de agradar ao poder econômico, Lula chegou a cogitar de ir além da autonomia de que o BC dispunha na prática sob o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso — aventando, assim, a ideia de uma instituição independente e profissional, mas com essas características asseguradas em lei.
Dirceu — imaginem vocês!!!! — chegou a fazer um anúncio a respeito
O PT estava na fase de consolidar o “Lulinha paz e amor”, que começou com a “Carta aos Brasileiros” na qual Lula procurava acalmar os mercados e evitar uma débacle da economia.
A uma certa altura da campanha, o então deputado José Dirceu (SP) – futuro chefe da Casa Civil de Lula e, posteriormente, a partir das revelações surgidas em 2005, o chefe da quadrilha responsável pelo escândalo do mensalão — chegou a prever que o Banco Central gozaria de “plena autonomia” durante o governo Lula, em anúncio que o candidato faria mais adiante.
Depois da notícia apregoada por Dirceu, contudo, pouco se falou no assunto. E, na verdade, o tal anúncio jamais ocorreu. Lula, no entanto, durante seus oito anos no Planalto, teve um histórico muito positivo de não interferência no trabalho do presidente que indicou para o Banco Central, Henrique Meirelles, ex-presidente mundial do BankBoston. Sua atitude se manteve com Mantega como ministro da Fazenda.
De todo modo, muita gente boa, no PT daquela época, namorou com a ideia, avançadíssima e ousada para um governo “de esquerda”, embora tecnicamente muito desejável e adotada mundo afora, de blindar o BC de qualquer influência política. Leiam a história a seguir.
A ideia era ir além do que foi o governo de FHC
Independência do Banco Central, ou plena autonomia operacional significa, entre outras coisas, que o governo, começando pelo presidente da República, fixaria as metas de inflação, e a partir daí o BC e sua diretoria, que constituem o Comitê de Política Monetária (Copom), disporiam expressa e formalmente de liberdade para perseguir esses objetivos sem interferência do Poder Executivo.
Vejam bem: quem fixaria a meta seria o governo eleito. O GOVERNO. O BC adotaria as medidas técnicas que considerasse necessárias para chegar a essa meta.
Além disso, o presidente e os diretores do BC passariam a ser detentores de mandatos fixos e “cruzados” – ou seja, cuja duração não coincidiria com a do mandato do presidente da República.
Mecanismos institucionais seriam previstos para que, em casos extremos de não-cumprimento de metas e outros especificados em lei, o presidente pudesse destituir o presidente e/ou diretores do BC — mas só nesses casos, especificados em LEI.
O passo do PT seria tanto mais ousado por ir além do que fizeram o próprio governo FHC e seus quadros liberais: a gestão FHC conferiu virtual autonomia operacional ao BC, na prática, mas não ousou transformar isso em lei. Até porque, na ocasião, para que lei nesse sentido pudesse ser aprovada, era necessário, antes, desatar o complicado nó do artigo 192 da Constituição, que previa uma única lei complementar para regulamentar dezenas de aspectos do sistema financeiro.
O nó seria desatado pelo Congresso com emenda à Constituição proposta ainda na gestão de FHC mas só aprovada em maio de 2003, com o apoio do PT, que permitiu o desmembramento da regulamentação do artigo.
A ideia de blindar legalmente o BC começou em agosto de 2002, em Londres, uma das escalas – a outra foi Frankfurt, capital financeira da Alemanha – da viagem em que o então principal assessor econômico de Lula, professor Guido Mantega, que é desde 2005 ministro da Fazenda, reuniu-se com diversos investidores europeus, em agenda organizada pelo Deutsche Bank.
Em Londres, Mantega manteve longas reuniões com diretores do Bank of England, o BC do Reino Unido, para entender seu funcionamento. Fez extensas anotações e trouxe vasto material na bagagem. O Bank of England ganhou plena autonomia operacional logo após a primeira vitória eleitoral do primeiro-ministro trabalhista Tony Blair, em 1997, e os resultados de seu trabalho a partir de então são considerados excelentes.
Em Frankfurt, sede tanto do Bundesbank, o BC alemão, como do Banco Central Europeu, igualmente recolheu informações.
De volta, Mantega relatou o que viu e ouviu a Lula.
Também levou as informações às reuniões periódicas que Dirceu e o coordenador do programa de Lula, o então prefeito Antônio Palocci, de Ribeirão Preto (SP), mais tarde o primeiro ministro da Fazenda do governo petista, mantinham com o grupo de economistas que colaborava com o programa econômico do PT: Luciano Coutinho (hoje presidente do BNDES), João Sayad, ex-ministro do Planejamento e à época secretário de Finanças da prefeita Marta Suplicy em São Paulo, o então professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Luiz Gonzaga Belluzzo e o ainda professor da mesma universidade Ricardo Carneiro e o atual chefe da Casa Civil de Dilma, Aloizio Mercadante, à época em campanha para o Senado.
O governo Lula não interferiu no BC
O plano com que o PT namorou, e que acabou não sendo levado à frente, guardava as linhas gerais aqui descritas. Na época, eu colaborava com a televisão do portal Terra e, nesta condição, entrevistei Mantega, com colegas ou sozinho, 3 ou 4 vezes durante a campanha, além de conversar informalmente com o hoje ministro. Ele me confirmou todos esses dados, fora dos microfones e câmeras.
Os envolvidos na discussão preferiram a autonomia operacional ao conceito de plena independência, que existe tanto no Federal Reserve Board (Fed), o BC dos Estados Unidos, e BCs como o Europeu — que é absolutamente independente dos 19 países que adotam o euro como moeda –, o Bundesbank, o Banco do Canadá e o do Japão, legalmente aptos a combater a inflação sem qualquer interferência do governo.
Embora a autonomia não migrasse para a lei, o governo Lula, na prática, e acertadamente, não interferiu no trabalho do o ex-tucano Henrique Meirelles e seus diretores. Não se pode dizer o mesmo de Dilma.
E agora a presidente finge que nada disso existiu, que seu próprio mentor, Lula, não cogitou da medida pela qual ela demoniza Marina — num show de hipocrisia e demagogia que não a enaltece.
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