quinta-feira, 24 de julho de 2014

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA A Literatura está de Luto


CARLOS VIEIRA
Num espaço de tempo curto, perdemos, nós brasileiros, e a literatura brasileira, três homens que deixam seu legado: a poesia, a prosa, o conto, a crônica e a crítica literária. Mais do que isso: a genialidade de escrever, descrever e adentrar na alma humana.

Ivan Junqueira, João Ubaldo Ribeiro e Rubem Alves se “encantaram” no dizer de Guimarães Rosa, e se eternizaram com suas obras. Cada um, como qualquer escritor, tendo seu vértice de apreender a natureza humana, os fenômenos da alma, o dia a dia da concretude da vida, os fatos, às vezes aparentemente banais, mas que em suas penas se convertem na capacidade para descrever os meandros da mente humana, aqueles que podem ser comunicados na linguagem escrita, como também aqueles que antecedem à escrita. Clarice Lispector procurava e sentia algo antes do pensamento; Drummond sempre foi em busca do poema, com intuição, respeito, sem pressa e deixando ele surgir.

Não pretendo nesse escrito, entrar em detalhes nas obras que nossos escritores recentemente “viajados” deixaram. Quero pensar numa ideia que me surgiu ao entrar em contato com essas perdas, esses desaparecimentos, fora de hora ou mesmo dentro da hora, nunca se sabe.

Há uma “cultura” que esses homens ficam imortais; alguns até apelidados de Imortais pela Academia Brasileira de Letras. O que é a imortalidade de um artista, de um escritor, de um poeta? É claro que é a permanência das suas obras, obras que repousam ou acordam das estantes e das bibliotecas no momento que alguém as descobre ou mesmo leem novamente.

A “eternidade” ou “imortalidade” de um escritor repousa na dimensão temporal do que ficou como pensamento, como tema filosófico, como pensamento não pensado ou como aquilo que o leitor se identificou e até se transformou depois de lê-los. Borges, um ícone da Literatura Universal sempre dizia que ler é reler, é ler novamente, é voltar a visitar a obra. De tanto ler e reler ele começou a escrever. Mas o que quero compartilhar com você, leitor, é que o verdadeiro leitor, ou o verdadeiro apaixonado pela Literatura é aquele que sempre está revistando um texto, um poema, um romance. Só as releituras facilitam a introjeção e incorporação dos autores.

Quando se ler pela primeira vez é sempre uma primeira vez, corre-se o risco de ficar mais sensibilizado pelo aspecto sensorial da obra, e não ter podido incorporá-la dentro de si, como um fator de acréscimo ao conhecimento de si mesmo e do mundo.  Ainda me referindo ao meu querido Borges, lembro que ele dizia em um dos seus ensaios que só acreditava que era escritor quando sua obra era reconhecida pelo leitor, associando com aspectos da sua  experiência de vida. Coisa do tipo: ”esse cara está falando de mim ou, no mínimo de alguém que conheço ou de algo que a vida me mostrou mas não ficou em mim.” Se o autor, ao ser lido, não escreve para o leitor e sobre o leitor, penso que não é arte. É inviável pensar na arte sem sua função social. Cantar no banheiro não é Arte, Arte é quando se canta diante de um público, em presença de um pequeno grupo ou num Teatro, é quando se transforma numa pública-ação. No entanto, não vamos esperar que isso se processe logo: ler é um exercício de disciplina, não é consumir um livro. Ler é uma experiência emocional, onde cada vez que se ler e reler um texto, fica estabelecida uma comunicação a dois – o autor e o leitor. A noção de escritor clássico necessariamente não se refere obrigatoriamente ao Período Clássico – Clássicos são todos os autores, como agora Ivan Junqueira, João Ubaldo e Rubem Alves e tantos outros, pois cada um, dentro do seu estilo  acrescentou aos leitores e à cultura,  descobertas daquilo que até então não era dizíveis e a partir daí  contribuíram para o crescimento cultural e emocional do mundo. 

Sempre concordei com Freud, quando humildemente achava que os escritores já tinham chegado antes, ou descrito antes, os fenômenos da alma humana que ele observava em seu consultório.

A perda desses nossos escritores recentemente aponta para o cuidado, a responsabilidade que os órgãos oficiais da Educação e da Cultura e da iniciativa privada tenham no sentido de  prossigam imprimir novas edições de suas obras, na íntegra. Digo na íntegra, pois recentemente o país leu na mídia, uma notícia grave e perversa em relação ao cuidado com nossa literatura e nossos escritores: Uma escritora que me foge seu nome agora, ou por ato falho não quero lembrar,  editou obras de Machado de Assis substituindo os termos machadianos por outras palavras, pois segundo ela os alunos não poderiam entender o significado da linguagem machadiana. Além disso, esses livros, reescritos por essa pessoa foram financiados pelo MEC, com inteira aprovação ministerial e com gastos grandiosos.  Posso dizer de maneira enfática que, os Imortais estão sendo mortos, pois os jovens de hoje não precisam mais ter o trabalho de consultar dicionários; aliás diga-se de passagem, eles não lerão Machado e tantos outros ícones da nossa literatura, lerão deformações fundamentais. A ignorância e o não acesso à cultura sempre foi uma arma contra qualquer possibilidade de desenvolvimento político e social. Não podemos aculturar de modo superficial e enganador!

Lembrei-me agora que Guimarães Rosa, antes de morrer, queria ter escrito sua obra desejada, talvez seu maior livro – Um Dicionário!

Lendo um poema postado nas redes sociais pelo  poeta, Affonso Romano de Sant’Anna, peço licença para fazer minhas as palavras dele, sob forma de poética, homenageando e pensando nas perdas recentes dos seus colegas:
ELES ESTÃO SE ADIANTANDO
“Eles estão se adiantando, os meus amigos./ Sei que é útil a morte alheia/ para quem constrói o seu fim./ Mas eles estão indo, apressados,/ deixando filhos, obras , amores inacabados/ e revoluções por terminar.
Não era o combinado.
Alguns se despedem heroicos,/ outros serenos./ Alguns se rebelam/ O bom seria partir pleno.
O que faço? Ainda agora/ um apressou seu desenlace./ Sigo sem pressa. A morte exige trabalho, trabalho lento/ como quem nasce.”
Affonso Romano de Sant’Anna in POESIA REUNIDA, L&PM.
Carlos de Almeida Vieira - psicanalista e psiquiatra.

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